Provas resolvidas: 88º Concurso de Ingresso–MPSP–Provas escritas 1 e 2

Prova resolvida: 88º Concurso MPSPNa segunda fase do 88º Concurso de ingresso à carreira de Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), houve duas questões de direito empresarial, não constantes da prova sorteada.

No entanto, o blog direito empresarial, aproveitando o ensejo para difundir o conhecimento desta matéria jurídica, traz em primeira mão a resolução das questões mencionadas, veiculando material que poderá ser utilizado na preparação para exames escritos e orais deste e de outros concursos, bem como para simples aprendizado pelos concurseiros e demais profissionais.

Continue lendo e veja as respostas dadas pelo Prof. Alexandre Demetrius Pereira.

Antes de iniciarmos o conteúdo principal do post, é importante salientar que em se tratando de resolução de questões de concursos, as respostas aqui veiculadas, por mais objetivas que sejam, refletem o entendimento do elaborador, tomado com base na legislação, doutrina e jurisprudência. Mesmo seguindo o gabarito oficial da prova, não estão excluídas divergências entre o que consta neste trabalho e o pensamento da instituição organizadora do concurso ou da respectiva banca examinadora.

Pois bem. Vamos às questões:

Primeira questão – Prova Escrita n. 1.

Prova Escrita n. 1 - Direito Comercial

Uma sociedade empresária, encontrando-se em dificuldades financeiras e antevendo eventual decretação de sua quebra, passa a alienar bens móveis, máquinas e mercadorias a terceiros, inclusive aquelas que compõem o seu estoque. Após a decretação de sua falência, o administrador judicial dá início à ação revocatória, pleiteando a declaração de ineficácia em relação à massa falida dos atos de alienação acima mencionados.

Considerando a questão acima, indique a natureza jurídica do estabelecimento empresarial e especifique como é composto tal estabelecimento, esclarecendo se a venda dos bens que compõem o estoque da empresa pode ser considerada como venda do estabelecimento empresarial e por quê. Informar se além das hipóteses de ineficácia de atos em relação à massa e revogabilidade de atos praticados em prejuízo de credores, previstos nos artigos 129 e 130, ambos da Lei 11.101/05, há alguma outra previsão legal de cabimento de ação revocatória. Em caso positivo, identificar a norma e a hipótese fática.

A questão trata de um tema muito presente nos concursos em geral, qual seja, a ineficácia de atos praticados pelo devedor falido em detrimento de seus credores, envolvendo a venda (parcial) de elementos corpóreos do estabelecimento empresarial (bens móveis, máquinas e mercadorias). A questão exige conhecimento amplo do candidato em matéria falimentar (ação revocatória) em conjunto com a teoria do estabelecimento empresarial.

Dividindo a resposta em partes, iniciaremos pela natureza jurídica do estabelecimento empresarial  e sua composição.

Na doutrina, há várias teorias que disputam primazia na definição dessa questão. Há aqueles que entendem que o estabelecimento tem personalidade jurídica, aqueles que defendem que se trata de uma universalidade de direito ou que se cuida de um bem imaterial. Entre nós, a doutrina mais aceita para definir a natureza jurídica do estabelecimento comercial é a que o define como uma universalidade de fato.

A composição do estabelecimento empresarial inclui elementos corpóreos/materiais (estoques, máquinas, veículos, etc.) e elementos incorpóreos/imateriais (clientela, aviamento, marcas, patentes, etc.). 

Se o leitor pretender se aprofundar no assunto, indicamos o estudo do texto Estabelecimento empresarial, postado aqui no blog direito empresarial,  bem como a excelente obra (clássica) de Oscar Barreto Filho (Teoria do Estabelecimento Comercial. São Paulo: Max Limonad, 1969).

Analisemos agora a ineficácia da alienação praticada.

Note-se que o enunciado da questão diz expressamente para o candidato esclarecer se a venda dos bens que compõem o estoque da empresa (rectius: melhor seria empregar o termo sociedade empresária) poderia ser considerada como venda do estabelecimento empresarial e por quê. Saliente-se que na primeira parte da questão, informa-se que não houve mera venda de estoque, mas também de máquinas e de outros bens móveis, o que acaba por gerar certa confusão.

A respeito do assunto, há intensa controvérsia na doutrina e na jurisprudência. Há acórdãos que entendem que a alienação de partes integrantes do estabelecimento pode dar ensejo à revocatória. [1] Parece-nos, entretanto, que a razão está com Fábio Ulhoa Coelho, quando esclarece que:

Na aplicação desse dispositivo, não têm alguns juízes atentado à diferença crucial entre alienação do estabelecimento e de bens componentes dele. O que a lei fulmina com a ineficácia é o trespasse, um complexo e específico negócio jurídico de transferência da titularidade do estabelecimento, quando realizado sem a observância de certos pressupostos (anuência expressa dos credores ou notificação destes etc.), e não o apartamento de alguns dos seus bens por meio de venda em separado. A alienação de elementos integrantes do estabelecimento empresarial, quando feito de modo isolado e sem caracterizar o desmantelamento do fundo de empresa, não é alcançada pela ineficácia do direito falimentar.

A rigor, aquelas decisões judiciais incorrem em grande equívoco. A venda em separado de componentes do estabelecimento empresarial, sem a desarticulação deste, é providência que o empresário pode adotar, já às vésperas da falência, como medida legítima e necessária à obtenção de recursos para o pagamento de dívidas, com vistas a tentar evitar a quebra. Se a indústria vende algumas de suas máquinas para realizar dinheiro e solver obrigações, o efeito é eventual redução dos tipos ou quantidade dos produtos fabricados, mas, desde que o funcionamento da unidade industrial não se prejudique – isto é, desde que não se verifique a desmontagem do estabelecimento empresarial –, não existe nenhuma frustração aos objetivos da falência que justifique a ineficácia do ato (Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. Saraiva, 2005, p.351)

Nessa mesma linha já decidiu o STJ, no que tange especificamente à alienação de bens componentes do estoque:

Processo REsp 1079781 / RS

RECURSO ESPECIAL 2008/0172934-0

Relator(a) MIN. NANCY ANDRIGHI (1118)

Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA

Data do Julgamento 14/09/2010

Data da Publicação/Fonte DJe 24/09/2010 LEXSTJ vol. 254 p. 142

Ementa

DIREITO COMERCIAL. FALÊNCIA. AÇÃO REVOCATÓRIA. VENDA DE MERCADORIA DURANTE O TERMO LEGAL DA QUEBRA. ALIENAÇÃO OU TRANSFERÊNCIA DE ESTABELECIMENTO. INEXISTÊNCIA. FRAUDE. PROVA. NECESSIDADE.

1. As mercadorias do estoque constituem um dos elementos materiais do estabelecimento empresarial, visto tratar-se de bens corpóreos utilizados na exploração da sua atividade econômica.

2. A venda regular de mercadoria integrante do estoque não constitui venda ou transferência do estabelecimento empresarial, na acepção do art. 52, VIII, do DL nº 7.661/45 (atual art. 129, VI, da Lei nº 11.101/05). Trata-se, na realidade, de mero desenvolvimento da atividade econômica da empresa, ainda que realizada numa situação pré-falimentar. Esse raciocínio não se aplica às alienações realizadas de má-fé, em que há desvio de numerário e/ou a dilapidação do patrimônio da empresa com o fito de prejudicar credores.

3. A revogação do ato de alienação do bem, realizado no termo legal da falência e antes de decretada a quebra, depende da prova da fraude. Precedentes.

4. Recurso especial provido.

Por fim, a questão pede ao candidato que indique se há, além da previsão dos artigos 129 e 130 da Lei 11.101/05 alguma outra hipótese em que é cabível a ação revocatória, identificando a norma e a hipótese fática respectivas.

De fato, existem algumas outras hipóteses na legislação empresarial nas quais se admite a ação revocatória. Exemplo disso é o art. 35 da Lei n. 6.024/74 (que dispõe sobre a intervenção e a liquidação extrajudicial de instituições financeiras) tratando de atos elencados na legislação falimentar, quando praticados por administradores de instituições financeiras.

Há também autores, tais como Washington de Barros Monteiro (Curso de Direito Civil, Saraiva, 1989, p.221), que equiparam a ação pauliana, prevista no Código Civil, à ação revocatória, dando a mesma denominação (revocatória) a ambas as ações mencionadas, o que equivaleria a entender cabível a ação revocatória nas hipóteses mencionadas no Código Civil (art. 158 e seguintes). Ressaltamos que essa maneira de ver o assunto, em nosso entendimento, não é a melhor, embora pudesse ser validamente citada, com apoio em doutrina consagrada.

Segunda questão – Prova Escrita n. 2.

Prova Escrita n. 2 - Direito Comercial

Identifique e explique os princípios informadores dos títulos de crédito, bem como responda, com base em tais princípios e nos requisitos específicos da duplicata mercantil, se é possível um prestador de serviços emitir duplicata para cobrar ressarcimento dos danos decorrentes da prestação de serviços, fundamentando a resposta.

Para resolver a questão, devemos lembrar da definição de título de crédito, consagrada por Vivante, hoje constante do art. 887 do Código Civil, segundo a qual se trata de um documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido.

Dessa definição, retiramos os princípios concernentes aos títulos de crédito:

  • Princípio da cartularidade:  o título de crédito se consubstancia em um documento que é necessário para que o titular exerça os direitos que nele se encontram incorporados. Em outros termos, para que o crédito constante do título possa ser cobrado, é necessário a posse do documento que o materializa;
  • Princípio da literalidade:  o título de crédito vale apenas e tão somente pelo que nele se contém. Desse modo, não podem ser exigidas do devedor principal ou de outros coobrigados quaisquer obrigações que não tenham previsão expressa (literal) no corpo do título;
  • Princípio da autonomia: as obrigações inseridas num título de crédito são autônomas e têm validade independente umas das outras. Assim, p.ex., a nulidade de um endosso não implica a nulidade do aval ao respectivo endossatário. Alguns autores inserem como subprincípios do princípio da autonomia outros dois, quais sejam: (1) o princípio da abstração, que preceitua que o título, ao circular, desvincula-se de sua causa, não mais podendo ser discutidas questões envolvendo a relação de base que originou a cártula. Há também quem entenda que o princípio da abstração é aquele que origina os títulos que não necessitam, para sua emissão, de uma causa ou negócio específicos (p.ex., letra de câmbio, nota promissória, etc.), os quais se contraporiam aos títulos que, para sua emissão, necessitariam de causa especial (p.ex., a duplicata); (2) o princípio da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé, que preconiza que o devedor de um título não possa opor ao portador de boa-fé, que o obteve mediante regular circulação (p.ex., via endosso), as defesas que teria unicamente contra o credor originário. Diante desse princípio, o devedor não poderia opor ao portador de boa-fé  defesa consistente em compensação contra o credor primitivo.

No que toca à emissão de duplicata para o cobrar ressarcimento dos danos decorrentes da prestação de serviços, devemos inicialmente entender que a duplicata é um título causal, no sentido de que, para sua emissão, é necessária a existência de uma causa que se consubstancia num negócio jurídico que lhe dê base. Tal negócio jurídico pode ser:

  • Contrato de compra e venda mercantil entre partes domiciliadas no território brasileiro, com prazo não inferior a 30 (trinta) dias, contado da data da entrega ou despacho das mercadorias;
  • Prestação de serviços por empresários individuais, sociedades empresárias, fundações ou sociedades civis (simples), que se dediquem tal atividade.

Fora de tais hipóteses, não é possível emitir duplicata. Caso venha a ser emitida sem causa, além da nulidade, poderá ainda haver, conforme o caso, o cometimento do crime do art. 172 do CP.

É necessário frisar que, para a emissão da duplicata a compra e venda a prazo ou a prestação de serviços devem ser objeto de contrato e da respectiva emissão de fatura (ou Nota Fiscal Fatura) que discrimine as mercadorias vendidas, os números e valores das notas parciais expedidas por ocasião das vendas, despachos ou entregas das mercadorias, ou ainda a natureza dos serviços prestados.

No caso de duplicata de prestação de serviços, a soma a pagar em dinheiro, que deverá constar da duplicata, corresponderá ao preço dos serviços prestados.

Assim, resta claro que a duplicata não pode ser emitida para o ressarcimento derivado da prestação de serviços, uma vez que:

  • A causa para a emissão da duplicata é a prestação de serviços e não eventual ressarcimento (indenização) decorrente daquela;
  • O valor de eventual ressarcimento não compõe o preço dos serviços prestados, portanto não pode constar da duplicata;
  • O ressarcimento normalmente é verba de origem indenizatória e, assim sendo, tem por característica básica a indefinição ou iliquidez com relação a seu montante (o qual deve ser previamente fixado em juízo, por meio de ação própria de conhecimento). Desse modo, não há uma base objetiva ou documental fixada de mútuo acordo pelas partes para definição da quantia devida, tal qual ocorre com a prestação de serviços, contratual e previamente ajustada entre as partes. Tal situação impede que valores ainda incertos sejam inseridos em título de crédito (que também consubstancia título executivo extrajudicial), o qual deve ser dotado de presunção de certeza e liquidez com relação a seu montante;
  • Nos termos da Lei 5.474/68, a fatura, documento de base para a emissão da duplicata de prestação de serviços, deve discriminar apenas a natureza dos serviços prestados e não eventual ressarcimento decorrente daqueles.


[1] Processo REsp 33762 / SP RECURSO ESPECIAL 1993/0009181-6 Relator(a) MIN. RUY ROSADO DE AGUIAR (1102) Órgão Julgador T4 - QUARTA TURMA Data do Julgamento 26/02/1997 Data da Publicação/Fonte DJ 12/05/1997 p. 18804 Ementa: “FALÊNCIA. AÇÃO REVOCATÓRIA. BEM INTEGRANTE DO ESTABELECIMENTO. A LEI QUER IMPEDIR A DESMONTAGEM DO ESTABELECIMENTO DO FALIDO, EM PREJUÍZO DOS CREDORES, SEJA PELA ALIENAÇÃO DO ESTABELECIMENTO COMO UM TODO, SEJA PELA TRANSFERÊNCIA DE PARTE SUBSTANCIAL DELE, DESCARACTERIZANDO-O COMO LOCAL DE COMERCIO OU DE INDUSTRIA, O QUE PODE OCORRER COM A TRANSFERÊNCIA DE BENS INTEGRANTES DO SEU ATIVO FIXO, COMO A MAQUINA REFERIDA NOS AUTOS. ART. 52, VIII DA LEI DE FALÊNCIAS. RECURSO NÃO CONHECIDO”. Processo REsp 9647 / SP RECURSO ESPECIAL 1991/0006164-6 Relator(a) MIN. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA (1088) Órgão Julgador T4 - QUARTA TURMA Data do Julgamento 23/03/1993 Data da Publicação/Fonte DJ 26/04/1993 p. 7211 LEXSTJ vol. 55 p. 94 RTJE vol. 118 p. 245 Ementa “PROCESSO CIVIL. FALÊNCIA. PETIÇÃO INICIAL. ERRÔNEO ENQUADRAMENTO LEGAL. "IRRELEVÂNCIA. BROCARDOS "IURA NOVIT CURIA" E "DA MIHI FACTUM DABO TIBI IUS". "CAUSA PETENDI". AÇÃO REVOCATÓRIA. ALIENAÇÃO DE DIREITO DE USO DE LINHA TELEFÔNICA. PERÍODO SUSPEITO. INEFICÁCIA EM RELAÇÃO A MASSA. I - SEGUNDO JA AFIRMADO EM PRECEDENTE (RESP 2.403-RS) "NÃO SE VERIFICA ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR QUANDO SE ATRIBUI AO FATO OU AO CONJUNTO DE FATOS QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DIVERSA DA ORIGINARIAMENTE ATRIBUÍDA. INCUMBINDO AO JUIZ A SUBSUNÇÃO DO FATO NORMA, OU SEJA, A CATEGORIZAÇÃO JURÍDICA DO FATO, INOCORRE MODIFICAÇÃO DA "CAUSA PETENDI" SE HA COMPATIBILIDADE DO FATO DESCRITO COM A NOVA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA OU COM O NOVO ENUNCIADO LEGAL". II - A ALIENAÇÃO DE DIREITO DE USO DE LINHA TELEFÔNICA REALIZADA DENTRO DO TERMO LEGAL DE FALÊNCIA PODE CONFIGURAR ATO DE VENDA OU TRANSFERÊNCIA DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL, TAL COMO DISCIPLINADO NO INCISO VIII DO ART. 52, DO DL 7.661/45, HIPÓTESE EM QUE, INDEPENDENTEMENTE DE TER OU NÃO HAVIDO INTENÇÃO DE FRAUDAR CREDORES (ELEMENTO SUBJETIVO), DEVE SER DECLARADA INEFICAZ EM RELAÇÃO A MASSA”.

Share:

Um comentário:

  1. Professor, em primeiro lugar gostaria de agradecer pelo EXCELENTE material disponibilizado no blog e, além disso, parabenizá-lo pela iniciativa, pois, como sabemos, Direito Empresarial não é uma matéria tão simples e trabalhada de uma forma tão didática e de fácil compreensão, como você fez. Infelizmente as faculdades e cursinhos não ensinam tal matéria da forma que, hoje, realmente, necessitamos. O Direito Empresarial vem, a cada dia, tomando mais espaço nos concursos e, o seu blog, com certeza, nos ajudará, MUITO. Obrigada pelo conteúdo disponibilizado. Fiquei extremamente feliz quando conheci o blog, diante da grande dificuldade que tenho com a matéria. Grande beijo.

    ResponderExcluir