Você sabe o que são valores mobiliários?

Você sabe o que são valores mobiliários?

Tema muito pouco trabalhado nos livros de direito empresarial, o conceito de valores mobiliários é essencial para a regulação do mercado de capitais.

Mas, afinal, o que são esses tais valores mobiliários? Qual seu conceito para o direito empresarial?

Pensando em nossos leitores, que desejam uma explicação didática e compreensível, o blog direito empresarial preparou um artigo específico, para que você tenha exata noção do instituto.

Continue lendo e desvende definitivamente esse conceito no texto de autoria do Prof. Alexandre Demetrius Pereira, aumentando seus conhecimentos sobre a matéria.

Evolução do conceito

Durante muito tempo, o conceito de valores mobiliários esteve atrelado e foi tratado de modo paralelo (como uma subespécie) aos conhecidos  títulos de crédito, aqueles “documentos necessários ao exercício do direito literal e autônomo, neles contido” (para adaptar a clássica definição de Vivante).

Um dos motivos pelos quais essa aproximação ocorreu, pode-se dizer, relacionou-se, em grande parte, à circunstância de que, tanto os títulos de crédito quanto os valores mobiliários continham um ponto em comum, qual seja, a finalidade de circulação.

Em alguns ordenamentos (inclusive na legislação nacional) a forma de circulação dos títulos de crédito muito se assemelhava àquela aplicável aos valores mobiliários (vide o caso das ações nominativo-endossáveis, hoje não mais existentes entre nós).

Mas essa equiparação entre os títulos de crédito e os valores mobiliários mostrou-se imperfeita.

Com efeito, muitas são as diferenças entre as duas categorias. Algumas delas são apontadas na tabela seguinte:

TÍTULOS DE CRÉDITO

VALORES MOBILIÁRIOS

Não se destinam à emissão em série, sendo usualmente individualizados

Emitidos em série

Não visam à distribuição em massa, limitando-se, como regra, a regular a relação entre partes definidas

Destinados à distribuição em massa (p.ex.: para a captação de recursos do público investidor)

Consubstanciam uma operação de crédito (troca de bens presentes por bens futuros)

Representam investimentos

Teor é determinado conforme a conveniência das partes a cada caso concreto

Em regra, contém cláusulas padronizadas

Não apresentam fungibilidade entre si

São fungíveis entre si

   

Algumas explicações sobre a tabela anterior são necessárias:

Os títulos de crédito comumente representam relações jurídico-econômicas individualizadas, ou seja, entre partes definidas. Não se destinam à emissão em série, de forma padronizada, para a distribuição em massa, tal como ocorre com os valores mobiliários (p.ex.: com os contratos futuros).

Além disso, os títulos de crédito não consubstanciam investimentos ou parcela do capital de sociedades, ou seja, não representam investimentos em que o titular realiza aporte de recursos em atividades produtivas, sem perspectiva de recebê-lo de volta em curto período de tempo. Ao contrário, os títulos de crédito documentalizam operação econômica consistente na troca (imediata ou de curto prazo) de bens presentes (dinheiro) por bens futuros (direito a receber) recebíveis normalmente em curto prazo.

Há ainda outros problemas da equiparação dos valores mobiliários aos títulos de crédito, dentre os quais podemos destacar:

  1. Enquanto os títulos de crédito normalmente estão materializados num documento (princípio da cartularidade) [1] em que são consubstanciados os direitos das partes, os valores mobiliários há muito tempo contam com a desmaterialização, ou seja, não precisam estar inseridos num suporte material (vide o caso das ações escriturais);
  2. Muito embora, como ressaltamos anteriormente, os títulos de crédito e os valores mobiliários se destinem precipuamente à circulação, e no passado a forma dessa circulação ocorrer possa ter sido comum, no ordenamento nacional já não mais coincidem, uma vez que grande parte dos valores mobiliários não permite transferência por institutos como o endosso;
  3. Enquanto a regulamentação legal dos títulos de crédito visa a proteger o tomador do crédito e a circulação segura deste, a regulamentação dos valores mobiliários visa primordialmente à proteção do investidor. Assim, o foco e a forma de proteção constante da legislação dos títulos de crédito apresentou-se assaz insuficiente para proteger o investidor (leigo), parte em contratos envolvendo valores mobiliários.

Diante das diferenças e dos problemas apontados, a doutrina e a jurisprudência vieram a elaborar novo conceito para os valores mobiliários, apartando-os dos títulos de crédito e dando-lhes características próprias, como veremos a seguir.

O conceito de valores mobiliários e as securities do direito norte-americano

Um dos grandes passos para a definição do conceito de valores mobiliários foi dado pela Suprema Corte norte-americana, no julgamento do caso SEC v. W. J. Howey & Co.

No julgamento desse caso concreto, foi fixado o conceito de security, do qual derivou, em grande parte, o atual contorno do que se entende por valores mobiliários. Os elementos então constantes da definição (conhecida como Howey definition) são os seguintes, como bem nos ensina Eizirik et al. [2]:

    1. Investment of money ( “investimento em dinheiro”);
    2. Common enterprise ( “empreendimento comum”);
    3. Expectation of profits ( “expectativa de lucro”);
    4. Solely from the efforts of others ( “unicamente dos esforços de outros”).

Tais elementos da definição, que passaram por várias discussões posteriores, são explicitados por Raquel Sztajn e Vera Helena de Melo Franco [3] nos seguintes termos:

Conforme a decisão são elementos da definição:

1) qualquer negócio jurídico que implique na transferência, por parte do investidor, de dinheiro ou bem para um investimento comum;

2) os recursos (bens, dinheiro ou trabalho) investidos devem ser obtidos junto ao público;

3) a promessa de benefícios futuros (não necessariamente lucros) como resultado do empreendimento comum;

4) a possibilidade de perder o investimento inicialmente feito (risk test). A rentabilidade do investimento está condicionada ao sucesso do lançador. A ideia de security implica sempre a colocação de um capital que corre risco;

5) a não participação do investidor na gestão do empreendimento, reduzindo-o a uma posição passiva, como simples prestador de capital, sendo esta passividade o que justifica a proteção legal. Note-se, todavia, que este entendimento foi afastado em decisões posteriores, admitindo-se, pelo menos, uma participação indireta;

6) a ideia de um empreendimento em comum, ligando a pluralidade dos investidores ao lançador.

Poderíamos, então, resumir graficamente os elementos da definição de valores mobiliários no seguinte esquema gráfico:

Gráfico: Caso Howey

Importância da definição

Afinal, por que é importante definir o que sejam valores mobiliários?

Os doutrinadores supracitados apontam algumas relevantes consequências dessa definição, entre as quais estão as representadas no gráfico seguinte:

Importância da definição de valores mobiliários

Como o tema está inserido no ordenamento nacional

No Brasil, a conceituação do instituto passou por várias fases, com inclusão posterior e paulatina de várias categorias.

A Lei n. 4.728/65 tratava da matéria, embora não trouxesse uma definição do assunto nos termos da conceituação de security anteriormente mencionada.

A Lei n. 6.385/76, por seu turno, trazia em sua redação original (já revogada) um elenco de situações e institutos, os quais eram considerados como valores mobiliários para os fins de aplicação da legislação respectiva, verbis:

Art . 2º São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:
I - as ações, partes beneficiárias e debêntures, os cupões desses títulos e os bônus de subscrição;
II - os certificados de depósito de valores mobiliários;
III - outros títulos criados ou emitidos pelas sociedades anônimas, a critério do Conselho Monetário Nacional.
Parágrafo único - Excluem-se no regime desta Lei:
I - os títulos da dívida pública federal, estadual ou municipal;
II - os títulos cambiais de responsabilidade de instituição financeira, exceto as debêntures.

Com o advento da Lei n. 10.198/01 adotou-se conceituação que aproximou o ordenamento nacional do tratamento das securities anteriormente aludido e foi introduzida a noção de contrato coletivo de investimento como valor mobiliário.

Art. 1o  Constituem valores mobiliários, sujeitos ao regime da Lei no 6.385, de 7 de dezembro de 1976, quando ofertados publicamente, os títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.

As vantagens da inclusão dos contratos coletivos de investimento no conceito de valores mobiliários, como nos revelam Carvalhosa e Eizirik [4] são caracterizadas pelos seguintes aspectos: (1) abrangência no conceito não só dos títulos classicamente definidos como valores mobiliários (ações, debêntures, etc.), mas também de todos os contratos em que haja captação de poupança do público investidor; (2) inclusão dos chamados “contratos de boi gordo”, os quais passaram a ser também fiscalizados pela CVM.

Finalmente, a Lei n. 10.303/01, além de definir aspectos criminais da prática do insider trading (para mais informações veja nosso artigo Para entender o “insider trading”, publicado aqui no blog direito empresarial), trouxe algumas inovações sobre a matéria, dentre elas veio a alterar a enumeração do art. 2º da Lei n. 6.385/76, incorporando a figura citada do contrato de investimento coletivo, além de reformular todo o elenco constante deste último diploma.

A atual redação do art. 2º da Lei n. 6.385/76, após as alterações da  Lei n. 10.303/01, restou assim redigida:

Art. 2o São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:

I - as ações, debêntures e bônus de subscrição;

II - os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II;

III - os certificados de depósito de valores mobiliários;

IV - as cédulas de debêntures;

V - as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos;

VI - as notas comerciais;

VII - os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários;

VIII - outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e

IX - quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.

É interessante verificar que a enumeração supracitada termina com uma norma genérica de encerramento, que abrange outras espécies de títulos ou contratos que contenham captação de recursos de investidores. Isso, segundo a lição de Carvalhosa e Eizirik (op. cit., p. 481), revela a desnecessidade de ampliação do rol dos valores mobiliários por normas infralegais:

Com a nova redação dada ao art. 2º, não mais existe a possibilidade de ser aumentado o elenco de valores mobiliários, seja pelo CMN, seja pela CVM. Dado o caráter flexível do conceito de “títulos e contratos de investimento coletivo”, presume-se que o legislador entendeu que não mais será necessária a ampliação do rol de ativos tidos como valores mobiliários, por meio da edição de normas regulamentares. Assim, o elenco de valores mobiliários previsto no art. 2º da Lei n. 6.385/76, em sua nova redação, passa a ser exaustivo e não mais exemplificativo.

Conclusões

Embora o conceito de valores mobiliários tenha se atrelado inicialmente à definição de títulos de crédito, tais categorias jurídicas foram progressivamente se desvinculando, uma vez que as distinções entre os institutos foram se estabelecendo de modo cada vez mais presente, impondo-se, ainda, a necessidade de uma legislação própria para a regulação dos valores mobiliários.

A conceituação de valores mobiliários segue, em linhas gerais, a definição de securities estabelecida pelo direito norte-americano e transposta paulatinamente para o ordenamento brasileiro, conforme a legislação citada no texto.

A importância da definição aludida resta clara, pois estabelece sérias consequências jurídicas, como a fiscalização de emissões pela CVM, a necessidade de publicação de informações ao investidor, o órgão competente para fiscalização ou mesmo outras obrigações acessórias, como a necessidade de auditoria independente e outros requisitos.


[1] É bem verdade que a doutrina e a jurisprudência vêm evoluindo para admitir, cada vez mais, a desmaterialização dos títulos de crédito. Exemplo disso são as decisões que admitem plenamente a executividade de duplicatas virtuais, protestadas por indicação, acompanhadas do comprovante de entrega de mercadorias. Nesse sentido: “REsp 1024691 / PR. RECURSO ESPECIAL. 2008/0015183-5. Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI (1118). Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento 22/03/2011. Data da Publicação/Fonte. DJe 12/04/2011. Ementa: EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DUPLICATA VIRTUAL. PROTESTO POR INDICAÇÃO. BOLETO BANCÁRIO ACOMPANHADO DO COMPROVANTE DE RECEBIMENTO DAS MERCADORIAS. DESNECESSIDADE DE EXIBIÇÃO JUDICIAL DO TÍTULO DE CRÉDITO ORIGINAL. 1. As duplicatas virtuais - emitidas e recebidas por meio magnético ou de gravação eletrônica - podem ser protestadas por mera indicação, de modo que a exibição do título não é imprescindível para o ajuizamento da execução judicial. Lei 9.492/97. 2. Os boletos de cobrança bancária vinculados ao título virtual, devidamente acompanhados dos instrumentos de protesto por indicação e dos comprovantes de entrega da mercadoria ou da prestação dos serviços, suprem a ausência física do título cambiário eletrônico e constituem, em princípio, títulos executivos extrajudiciais. 3. Recurso especial a que se nega provimento.”

[2] Mercado de Capitais – Regime jurídico. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 33.

[3] Manual de Direito Comercial. São Paulo: RT, 2005. v. 2. p. 93.

[4] A nova Lei das S/A. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 473.

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