Questão de empresarial do concurso 184 da magistratura-SP–Prova escrita

Interessante questão de Direito Empresarial foi formulada na prova da magistratura de São Paulo, envolvendo conhecimentos de sociedades anônimas (redução de capital, prejuízo aos credores e ação revocatória em falência).

Na verdade, o objeto da questão vai além do interesse dos que prestam concursos, abrangendo também o âmbito daqueles leitores que lidam profissionalmente com a matéria.

Atento às necessidades de nossos leitores, o Prof. Alexandre Demetrius Pereira elaborou aqui no blog direito empresarial um texto especial abordando a resolução do problema proposto no concurso aludido.

Vale a pena conferir!!

A questão

A questão cobrada no exame da magistratura de São Paulo foi a seguinte:

Decretada a falência da Companhia de Fertilizantes Brasil, por sentença de 1º de outubro de 2012. O Administrador Judicial constata que em 1º de outubro de 2009 fora efetuado o reembolso de ex-acionistas à conta do capital social. Constata ainda que os acionistas que se retiraram da Companhia não foram substituídos, persistindo a redução do capital social. Constata também o Administrador Judicial que a massa não é suficiente para o pagamento de créditos mais antigos.

Pergunta-se:

a) Qual medida judicial poderá ser tomada pelo Administrador Judicial? Fundamente.

b) Qual o prazo para o requerimento da medida judicial cabível? Fundamente.

c) Contra quem a medida judicial cabível poderá ser promovida? Fundamente.

d) O Juiz da falência poderá tomar, de ofício, alguma medida em relação ao caso concreto? Fundamente.

e) Se o Administrador Judicial for omisso e não tomar a medida judicial cabível, poderá ser responsabilizado por eventual prejuízo causado à massa falida? Fundamente.

Devemos lembrar que os comentários a seguir somente propõem uma possível resolução da questão. Como sabemos, em se tratando de matéria jurídica, sempre podem haver divergências entre o pensamento aqui demonstrado e as expectativas de outros profissionais e de bancas de concurso.

Explicando a situação econômica e a operação realizada

Temos uma situação em que a companhia retratada reduziu seu capital, realizando operação de reembolso do valor de parte de suas ações, à conta do capital social.

Devemos lembrar que reembolso de ações nada mais é que a operação pela qual, nos casos previstos em lei, a companhia paga aos acionistas dissidentes de deliberação da assembléia-geral o valor de suas ações (art. 45 da Lei 6.404/76).

Veja-se que o reembolso de ações, com restituição de quantias em dinheiro aos acionistas, causa uma redução dos ativos da companhia, uma vez que esta deverá entregar aos primeiros o valor correspondente às ações por eles titularizadas.

Essa diminuição nos ativos (= redução de caixa usado no pagamento das ações reembolsadas) poderá eventualmente ser prejudicial à companhia, pois ela não contará com os recursos utilizados no reembolso para emprego em possíveis projetos inerentes a sua atividade empresarial.

Do mesmo modo, a diminuição do ativo poderá causar prejuízo dos credores da companhia, que não disporão mais das quantias utilizadas no reembolso para a satisfação de seus créditos.

Para termos noção exata de como isso acontece, vamos imaginar um exemplo prático supondo alguns valores no balanço de uma companhia, antes e depois da redução do capital.

Para iniciarmos, vamos imaginar o balanço antes de 1/10/2009, de forma muito simplificada, para facilitar o entendimento. Lembramos que se trata somente de uma hipótese ilustrativa, pois os dados numéricos a seguir representados não estavam na questão:

Ativo  Valores  (R$)  Passivo e PL  Valores (R$) 

Ativo circulante

Passivo Circulante

Caixa e contas bancárias

100.000,00

Fornecedores 

150.500,00

Empréstimos a pagar

90.000,00

Ativo imobilizado

Patrimônio Líquido

Maquinário

140.500,00

Capital social

95.000,00

Prejuízos acumulados

(95.000,00)

Total

 240.500,00

240.500,00

Repare que os bens e direitos da companhia constantes de seu ativo (caixa, contas bancárias e maquinário), totalizam um valor de R$ 240.500, que são estritamente suficientes para pagar suas dívidas, representadas no passivo, que somam exatamente os mesmos R$ 240.500 (= R$ 150.500,00 de dívidas com fornecedores, mais R$ 90.000,00 de empréstimos a pagar).

Graficamente, poderíamos comparar a situação dos ativos e passivos:

Imaginemos agora que a companhia operacionaliza o reembolso de parte do valor de suas ações, reduzindo seu capital social. Suporemos, apenas para simplificar, que dos R$ 95.000,00 de capital social, serão restituídos R$ 40.000,00 aos acionistas, os quais sairão do caixa e das contas bancárias da companhia. O reembolso, em nosso exemplo, será realizado pelo valor constante do balanço patrimonial anteriormente transcrito.

Após o reembolso, o balanço irá se apresentar da seguinte forma (as contas em vermelho são as utilizadas, e reduzidas, na operação):

Ativo

Valores (R$) 

Passivo e PL

 Valores (R$) 

Ativo circulante

Passivo Circulante

Caixa e contas bancárias

60.000,00

Fornecedores 

150.500,00

Empréstimos a pagar

90.000,00

Ativo imobilizado

Patrimônio Líquido

Maquinário

140.500,00

Capital social

55.000,00

Prejuízos acumulados

(95.000,00)

Total

200.500,00

200.500,00

Repare que o capital social, anteriormente em R$ 95.000,00, passou a totalizar R$ 55.000,00 (saída de R$ 40.000,00). Por sua vez, a contrapartida dessa operação ocorre no caixa e contas bancárias, que passaram de R$ 100.000,00 para R$ 60.000,00 (R$ 40.000,00 saíram do caixa e contas bancárias para pagar acionistas).

Nessa situação, a companhia já não possui mais ativos suficientes para pagar suas dívidas, mesmo que estas tenham ficado inalteradas, como ocorreu em nossa hipótese. Note que o ativo, agora insuficiente, passou a totalizar R$ 200.500,00 e o passivo continua com os mesmos R$ 240.500, restando, portanto, R$ 40.000,00 de dívida sem cobertura de ativo para a satisfação dos credores.

Veja graficamente a seguir a comparação entre o ativo e o passivo após o reembolso:

Constata-se claramente, pois, que a operação de reembolso foi prejudicial aos credores, pois privou-lhes de ativos essenciais ao pagamento de seus créditos.

Explicando a questão jurídica

Visto que o reembolso foi prejudicial, a questão é saber se, decretada a falência da companhia que realizou tal negócio jurídico, pode ele ser declarado ineficaz pelo juízo falimentar, permitindo a arrecadação das quantias reembolsadas pela massa e obrigando os acionistas ao respectivo ressarcimento.

A questão, em verdade, não é nova, e tem permissão expressa em lei. Com efeito, o art. 45, §8º, da Lei 6.404/76 preceitua:

§ 8º Se, quando ocorrer a falência, já se houver efetuado, à conta do capital social, o reembolso dos ex-acionistas, estes não tiverem sido substituídos, e a massa não bastar para o pagamento dos créditos mais antigos, caberá ação revocatória para restituição do reembolso pago com redução do capital social, até a concorrência do que remanescer dessa parte do passivo. A restituição será havida, na mesma proporção, de todos os acionistas cujas ações tenham sido reembolsadas

O texto legal supracitado responde claramente o item “a” da questão: a ação cabível é a revocatória, buscando a declaração de ineficácia do reembolso perante a massa falida, bem como a obrigação de restituição dos valores objeto de tal operação.

O prazo para a ação revocatória é uma questão que deve ensejar a devida meditação do candidato e do aplicador da lei.

De fato, há dois tipos de ineficácia previstas na Lei 11.101/05: [1] os casos de ineficácia objetiva, constantes do art. 129, em que não é necessária a existência de prova de intenção de prejudicar credores ou conluio fraudulento entre o devedor e o terceiro; [2] os casos de ineficácia subjetiva, previstos no art. 130 da LRF, em que a prova da intenção e conluio tem de estar presentes para que seja decretada judicialmente a ineficácia do ato impugnado.

A distinção entre essas duas hipóteses é que a Lei 11.101/05 prevê um prazo para a ação revocatória prevista no art. 130 (ineficácia subjetiva), mas não o faz para a ação prevista no art. 129 (ineficácia objetiva).

O prazo para intentar a ação revocatória prevista no art. 130 consta do art. 132 da Lei 11.101/05, que estabelece:

Art. 132. A ação revocatória, de que trata o art. 130 desta Lei, deverá ser proposta pelo administrador judicial, por qualquer credor ou pelo Ministério Público no prazo de 3 (três) anos contado da decretação da falência.

Já no que toca ao prazo para a ação do art. 129, há divergências na doutrina. Manoel Justino Bezerra Filho, por exemplo, assim opina:

Esse prazo de três anos existe apenas para a ação revocatória do art. 130 e não para os casos de ineficácia objetiva do art. 129. Para os casos do art. 129, a ineficácia pode ser declarada até o momento do trânsito em julgado da sentença de extinção das obrigações, prevista no art. 159; a partir desse momento, não mais existentes obrigações a favor da massa, desaparece qualquer interesse processual para o pedido que seria feito em ação declaratória de ineficácia, com fundamento na ineficácia objetiva. Nelson Nery Jr. (Leis civis comentadas, p. 474) entende que esta pretensão adquire perpetuidade e por isso esta ação é imprescritível, o que está correto, limitada, porém, a possibilidade de ação até o momento do trânsito em julgado da sentença de extinção das obrigações. É que, a partir deste momento, não se fala mais em prescrição, e sim em inexistência de pessoas com interesse processual para o pedido, eis que os créditos foram julgados extintos na falência (Lei de Recuperação e Falências Comentada, p.327).

Parece-nos, embora não seja algo explícito no texto legal, que a questão da ineficácia do reembolso consubstancia caso de ineficácia objetiva, pois o art. 45, §8º, da Lei 6.404/76 não exige qualquer prova de conluio ou intenção de prejudicar credores como requisitos do pedido. Resta, portanto, a divergência supracitada quanto ao prazo de ajuizamento.

A legitimidade passiva para a ação revocatória (item “c” da questão), ou seja, contra quem a revocatória pode ser proposta, vem explicitada no art. 133 da Lei 11.101/05:

Art. 133. A ação revocatória pode ser promovida:

I – contra todos os que figuraram no ato ou que por efeito dele foram pagos, garantidos ou beneficiados;

II – contra os terceiros adquirentes, se tiveram conhecimento, ao se criar o direito, da intenção do devedor de prejudicar os credores;

III – contra os herdeiros ou legatários das pessoas indicadas nos incisos I e II do caput deste artigo.

No que toca à possibilidade de o juiz falimentar decretar a ineficácia de ofício (independentemente de provocação das partes), tratando-se, como entendemos, de hipótese de ineficácia objetiva, essa faculdade vem estampada no parágrafó único do art. 129 da Lei 11.101/05.

Parágrafo único. A ineficácia poderá ser declarada de ofício pelo juiz, alegada em defesa ou pleiteada mediante ação própria ou incidentalmente no curso do processo.

Finalmente, quanto à possibilidade de responsabilização do administrador judicial, cabe primeiramente ressaltar que o administrador judicial omisso em tomar as providências cabíveis em benefício da massa poderá ser destituído de sua função, sem prejuízo de eventual responsabilidade civil que couber no caso concreto. Nesse sentido, preceitua o art. 31 da Lei 11.101/05 (g.n.):

Art. 31. O juiz, de ofício ou a requerimento fundamentado de qualquer interessado, poderá determinar a destituição do administrador judicial ou de quaisquer dos membros do Comitê de Credores quando verificar desobediência aos preceitos desta Lei, descumprimento de deveres, omissão, negligência ou prática de ato lesivo às atividades do devedor ou a terceiros.

Conclusões

Economicamente, o reembolso de ações é medida que pode trazer prejuízo aos credores, que poderão ficar privados de ativos suficientes para a satisfação de seus créditos.

Ocorrido o reembolso, cabe ação revocatória para declarar a ineficácia e determinar a restituição à massa dos valores reembolsados.

Entendemos que se trata de hipótese de ineficácia objetiva, razão pela qual o prazo para o ajuizamento da medida não está previsto expressamente em lei, havendo doutrinadores que opinam pela imprescritibilidade e outros pela possibilidade de ajuizamento até o trânsito em julgado da decisão de extinção das obrigações do falido.

A legitimidade passiva vem estampada no art. 132 da LRF, podendo o juiz declarar a ineficácia de ofício ou acolhendo provocação de defesa.

Será cabível a destituição do administrador judicial omisso, sem prejuízo de eventual responsabilidade civil.

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2 comentários:

  1. Prof. mais um excelente e esclarecedor artigo.
    Gostaria de solicitar, por gentileza e se for possível, que o mesmo estivesse disponível para download, pois quem almeja a magistratura, há de considerá-lo de grande importância como material de estudo para os concursos vindouros.
    Att.,

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    1. Obrigado, Renata! Fico muito contente por ajudar. Colocaremos futuramente em pdf para download.

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