Analisando o filme “O homem de ferro” sob a ótica do Direito Empresarial

Iron Man

Você já viu o filme “O homem de ferro” (Iron Man)?

A tônica principal desse filme gira em torno do personagem Tony Stark, dirigente de uma promissora companhia norte-americana, a Stark Industries, que fornece armas ao governo estadunidense.

Após a demonstração de um míssil inovador (jericho missile) a representantes do exército,  Tony Stark é sequestrado por um grupo de guerrilheiros e mantido em cativeiro, onde descobre que parte das armas produzidas por sua companhia fora desviada, sendo utilizadas, efetiva e potencialmente, contra cidadãos e soldados americanos.

A decisão de Tony Stark, após libertar-se do cativeiro (ocasião em que desenvolve o primeiro protótipo de armadura que dará origem ao homem de ferro), é clara e comunicada imediatamente à imprensa em uma entrevista coletiva: a Stark Industries, um dos maiores fornecedores de armas do governo, irá parar sua produção bélica, desativando o setor principal da companhia. Em meio a jornalistas estarrecidos com a notícia bombástica, a trama do filme se desenrola, inclusive com as notícias das repercussões da decisão no mercado.

Nosso tema neste artigo será: e se a Stark Industries fosse uma companhia aberta brasileira? Poderia o suposto acionista controlador, Tony Stark, comunicar a notícia ao mercado dessa forma? Que direito teriam os acionistas da Stark Industries se vissem o objeto principal da companhia ser descontinuado ou modificado? Haveria aí abuso do poder de controle? Como a Stark Industries deveria inserir a notícia da descontinuidade do setor de produção de armas em suas demonstrações contábeis de maneira a informar os investidores?

Se você gosta de quadrinhos, cinema e deseja saber qual seria a solução das questões mencionadas, vale a pena continuar a leitura deste artigo do Prof. Alexandre Demetrius Pereira.

Situando a questão

O filme Iron Man não dá maiores detalhes sobre a companhia Stark Industries, nem particulariza qual a posição exata de Tony Stark na sociedade. Obviamente, nem era essa a finalidade da obra. Para ser fiel ao roteiro, entretanto, podemos coletar um pouco da história da companhia no site marvel wikia (clique aqui para acessar o original):

Stark Industries is a multinational conglomerate with facilities in over thirty different countries on all seven continents. The President and CEO of Stark Industries is billionaire industrialist Anthony "Tony" Stark, also known as the super-hero Iron Man.

Temos, portanto, que Tony Stark na sociedade é um CEO (Chief Executive Officer). Essa figura usualmente corresponde ao cargo que denominamos de diretor presidente da companhia. Não fica claro se Tony Stark também ocupa a figura de acionista controlador. No entanto, no site marvel wikia temos a informação de que a Stark Industries tem características de propriedade familiar, tendo sido criada pelos antecessores de Tony Stark:

The company's origins date back to the mid-19th century when Isaac Stark, Sr. began developing new electrical and engineering technology that helped to redefine innovative security measures for the industrial age.

With growing prosperity, Stark Industries (then known as Stark Enterprises) was quickly propelled into the modern era as a major global industrial superpower, due in no small measure to Isaac Stark, Sr.'s direct descendant Howard Stark. Under Howard Stark's leadership, Stark Industries became the world leader in the development of munitions with its corporate office located on Long Island, New York. Stark Industries quickly branched out into other scientific fields including aeronautics, robotics, micro-technology and fringe science. With increasing expansion, the company soon became known as Stark Industries. When Howard Stark passed away, his sole heir Tony Stark inherited all of his father's business assets and took full control of Stark Industries.

Assim, assumiremos que Tony Stark exerce cumulativamente as funções de diretor presidente e acionista controlador da companhia. Importante salientar que não sabemos que tipo de controle Tony Stark titulariza: poderia ser um controle majoritário (exercido pessoalmente pela propriedade de mais de 50% de ações ordinárias), minoritário (titularizando menos de 50%, mas conseguindo o controle pessoal, dada a pulverização de capital de outros acionistas), indireto (exercido por meio do controle de outra companhia que compusesse o quadro acionário da Stark Industries) ou mesmo exercido por intermédio de acordo de acionistas.

Como dissemos, a decisão de Tony Stark é desativar o setor de produção de armas da Stark Industries (no filme, ele se refere textualmente da seguinte forma em sua entrevista coletiva à imprensa: “I am shutting down the weapons manufacturing division of Stark Industries”). Assumiremos aqui que esse setor constitui o objeto principal da companhia e sua principal fonte de receita e lucros e que a sociedade prossegue com objeto diverso ou com objetos secundários. 

Após a decisão de Tony Stark, o filme retrata que o mercado reage mal à notícia do fechamento do setor de fabricação de armas. Veja no vídeo seguinte do YouTube um trecho em que se retrata a reação do mercado acionário, tomando por base um programa famoso de TV nos EUA (Mad Money dirigido por Jim Cramer [esse programa existe na realidade]) no qual o apresentador, em tom agressivamente jocoso, recomenda aos investidores que vendam suas ações imediatamente:

Stark Industries: “Abandonar navio!!!” (“Abandon ship!!”) . Venda, venda, venda!!! (“Sell, sell, sell!!!): “Uma companhia bélica que não fabrica armas!!!” (“A weapons company that doesn’t make weapons!!”)

Postas essas considerações iniciais, passemos à análise dos problemas referidos no início deste artigo.

A mudança do objeto social: formas, mecanismos e quorum

Se Tony Stark, na posição de acionista controlador de uma companhia brasileira, quisesse modificar o objeto da Stark Industries, teria de passar por alguns trâmites importantes, além de meramente anunciar sua vontade.

O primeiro requisito básico é que mudança de objeto societário envolve modificação do estatuto da companhia. E modificação do estatuto é matéria de competência exclusiva de assembleia de acionistas.

Nesse sentido, dispõe o art. 122, I, da Lei 6.404/76 que compete privativamente à assembleia geral reformar o estatuto social.

Logo, se o acionista controlador, Tony Stark, desejasse alterar o objeto da sociedade, teria de ser convocada, como regra, assembleia geral extraordinária para apreciação da proposta, não bastando sua vontade isoladamente anunciada à imprensa.

Mas não param por aí os problemas que Tony Stark teria para implementar seu propósito.

É que, para a modificação do estatuto no tocante ao objeto social, a Lei 6.404/76 exige quorum qualificado correspondente à metade das ações com direito a voto. Isso se o estatuto da Stark Industries não exigisse quorum ainda maior. Vejamos seu art. 136, VI:

Art. 136. É necessária a aprovação de acionistas que representem metade, no mínimo, das ações com direito a voto, se maior quorum não for exigido pelo estatuto da companhia cujas ações não estejam admitidas à negociação em bolsa ou no mercado de balcão, para deliberação sobre:

(…)

VI - mudança do objeto da companhia

Se Tony Stark tivesse mais de 50% das ações votantes, é possível que conseguisse aprovar em assembleia sua proposta. Mas, como dissemos anteriormente, não sabemos exatamente qual o percentual do capital detido por Tony Stark.

Suponhamos, por exemplo, duas situações em que Tony Stark não conseguiria modificar o objeto da companhia por ele controlada:

  1. Se o controle de Tony Stark fosse exercido com menos de 50% das ações com direito a voto, ou se a proposta de Tony Stark violasse o estabelecido em acordo de acionistas registrado na companhia (neste último caso, a companhia não poderia registrar, como regra, o voto de Tony Stark, contrário ao acordo, nos termos do art. 118, §8º, da Lei 6.404/76);
  2. Se ele detivesse, por exemplo, 50% mais 1 ação com direito a voto, mas o estatuto da Stark Industries exigisse quorum mais elevado (v.g., 2/3 das ações votantes). Veja-se que essa hipótese seria excepcional e parece não aplicável ao caso estudado, uma vez que o artigo 136 só admite que o estatudo exija maior quorum em se tratando de companhia cujas ações não estejam admitidas à negociação em bolsa ou mercado de balcão (= companhias fechadas), o que não seria a hipótese da Stark Industries.

Veja-se, portanto, que a tarefa de Tony Stark, mesmo detendo o controle da Stark Industries, poderia não ser tão simples quanto aparentemente é demonstrado no filme.

Como a notícia deveria ser comunicada ao mercado e aos investidores?

Tony Stark ainda poderia ter outros problemas se simplesmente reunisse a imprensa em uma entrevista coletiva para anunciar suas intenções de modificação do objeto social.

É que, para as companhias abertas, os fatos que possam ter influência na cotação de seus valores mobiliários (fatos relevantes) têm uma forma específica para sua comunicação ao mercado.

No Brasil, a forma de comunicação de fato relevante é regulada atualmente pela Instrução CVM n. 358, de 3 de janeiro de 2002.

De acordo com essa Instrução (art. 2º):

Considera-se relevante, para os efeitos desta Instrução, qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembleia geral ou dos órgãos de administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político-administrativo, técnico, negocial ou econômico-financeiro ocorrido ou relacionado aos seus negócios que possa influir de modo ponderável:

I - na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia aberta ou a eles referenciados;

II - na decisão dos investidores de comprar, vender ou manter aqueles valores mobiliários;

III - na decisão dos investidores de exercer quaisquer direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos pela companhia ou a eles referenciados.

E no parágrafo único do mesmo artigo são dados alguns exemplos de fatos relevantes, dentre os quais destacamos o seguinte:

Parágrafo único. Observada a definição do caput, são exemplos de ato ou fato potencialmente relevante, dentre outros, os seguintes:

( …)

XIX - início, retomada ou paralisação da fabricação ou comercialização de produto ou da prestação de serviço;

Em havendo fato relevante, conceito dentro do qual estaria enquadrada a paralização da fabricação de armas pela Stark Industries, a Instrução CVM n. 358/02 traz alguns requisitos para sua comunicação e divulgação para o mercado, dentre eles (g.n.):

  • Cumpre ao Diretor de Relações com Investidores divulgar e comunicar à CVM e, se for o caso, à bolsa de valores e entidade do mercado de balcão organizado em que os valores mobiliários de emissão da companhia sejam admitidos à negociação, qualquer ato ou fato relevante ocorrido ou relacionado aos seus negócios, bem como zelar por sua ampla e imediata disseminação, simultaneamente em todos os mercados em que tais valores mobiliários sejam admitidos à negociação (art. 3º);

  • Os acionistas controladores, diretores, membros do conselho de administração, do conselho fiscal e de quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, criados por disposição estatutária, deverão comunicar qualquer ato ou fato relevante de que tenham conhecimento ao Diretor de Relações com Investidores, que promoverá sua divulgação (art. 3º, § 1o);

  • O Diretor de Relações com Investidores deverá divulgar simultaneamente ao mercado ato ou fato relevante a ser veiculado por qualquer meio de comunicação, inclusive informação à imprensa, ou em reuniões de entidades de classe, investidores, analistas ou com público selecionado, no país ou no exterior (art. 3º, § 3o);

  • A divulgação deverá se dar através de publicação nos jornais de grande circulação utilizados habitualmente pela companhia, podendo ser feita de forma resumida com indicação dos endereços na rede mundial de computadores - Internet, onde a informação completa deverá estar disponível a todos os investidores, em teor no mínimo idêntico àquele remetido à CVM e, se for o caso, à bolsa de valores e entidade do mercado de balcão organizado em que os valores mobiliários de emissão da companhia sejam admitidos à negociação (art. 3º, § 4o);

  • Cumpre aos acionistas controladores, diretores, membros do conselho de administração, do conselho fiscal e de quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, criados por disposição estatutária, e empregados da companhia, guardar sigilo das informações relativas a ato ou fato relevante às quais tenham acesso privilegiado em razão do cargo ou posição que ocupam, até sua divulgação ao mercado, bem como zelar para que subordinados e terceiros de sua confiança também o façam, respondendo solidariamente com estes na hipótese de descumprimento (Art. 8o).

Verificando sumariamente as diretrizes supracitadas, vemos que Tony Stark não cumpriu à risca (ao contrário, parece ter desobedecido em muitos pontos) as determinações da CVM sobre como revelar fatos relevantes de uma companhia aberta ao mercado. Efetivamente, o fato não foi divulgado pelo Diretor de Relações com Investidores, não foi comunicado simultaneamente à CVM e às bolsas, não foi divulgado pelos órgãos de imprensa usualmente utilizados pela companhia, nem foi guardado sigilo até a divulgação ao mercado.

Assim, não seria surpreendente se Tony Stark fosse sancionado pela CVM diante de tais práticas.

Quais seriam os direitos dos acionistas diante da mudança de objeto?

E se você fosse acionista da Stark Industries e visse suas ações despencarem de preço diante do anúncio do controlador em mudar o objeto da companhia (ainda que restringindo suas as atividades a objetos secundários e menos lucrativos)? Qual seriam seus direitos em uma hipótese como essa?

Obviamente, uma primeira alternativa seria utilizar o mecanismo de mercado, como aconselhado no filme na encenação do programa de Jim Cramer, ou seja, simplesmente abandonar o barco e vender suas ações.

Mas haveria outra alternativa?

Devemos lembrar que a mudança de objeto social, nos termos da Lei 6.404/76, dá direito ao acionista que divirja da deliberação da assembleia de exercer seu direito de retirada ou direito de recesso, obrigando que a companhia lhe restituísse a parcela que detenha no respectivo patrimônio líquido (ou outros valores, conforme o caso). Em outras palavras, o acionista que não concordasse com a postura de Tony Stark poderia sair da sociedade, obtendo o ressarcimento do valor de suas ações.

O fundamento do direito de retirada ou recesso está no art. 137 da Lei 6.404/76:

Art. 137. A aprovação das matérias previstas nos incisos I a VI e IX do art. 136 dá ao acionista dissidente o direito de retirar-se da companhia, mediante reembolso do valor das suas ações (art. 45), observadas as seguintes normas

Pois bem. Postas estas premissas, algumas questões devem ser respondidas:

  1. Qualquer mudança de objeto de uma companhia dá ao acionista o direito de retirada ou ela precisa ser substancial?
  2. É necessário que a mudança de objeto tenha sido deliberada em assembleia, ou a mudança “de fato” do objeto (sem prévia deliberação assemblear) dá igualmente ao acionista o direito de recesso?
  3. Qual o valor que deve ser pago ao acionista que decidir exercer seu direito de recesso?

Vamos lá.

Resposta à primeira questão:

Há alguma divergência quanto à isso. Na excelente obra de Alfredo Lazzareschi Neto (Lei das Sociedades por Ações Anotada, Saraiva, 2012), o autor traz exemplo de antigo acórdão do STF em que não se exigiu mudança substancial ou essencial no objeto da companhia para dar direito ao recesso (RE 104895-6. Rel Min Carlos Madeira). Tal posicionamento, entretanto, ressalva o autor aludido, já teve entendimentos contrários do colegiado da CVM, exigindo que a mudança de objeto fosse tal que mudasse o risco inicialmente admitido pelo acionista ao investir nas ações da companhia.

No caso que estamos a analisar, parece-nos, em princípio, que a mudança de objeto é substancial ou essencial, pois descontinuou a principal atividade da companhia controlada por Tony Stark, alterando completamente os riscos inicialmente assumidos pelos investidores. Assim, embora sempre caibam discussões, acreditamos que estaríamos diante de caso em que o direito de recesso ou retirada deveria ser garantido ao acionista.

Resposta à segunda questão:

O colegiado da CVM tem adotado a posição de que, como regra, seria necessária a prévia decisão assemblear deliberando pela modificação do objeto para conferir ao acionista o direito de retirada.

Nesse sentido:

RECURSO CONTRA DECISÃO DA SEP RELATIVA A MUDANÇA DE OBJETO SOCIAL - ESTATUTO SOCIAL -  PROC. RJ2003/7612
Reg. nº 4195/03
Relator: DWB

Trata-se de recurso contra entendimento da SEP de houve a alteração do objeto social sem prévia aprovação de acionistas que representem metade, no mínimo, das ações com direito a voto, contraria o disposto no artigo 136, VI da Lei das S/A; e que a deliberação a respeito da mudança do objeto social da companhia, ensejaria o direito de recesso aos acionistas dissidentes, conforme previsto no artigo 137 da mesma Lei.

O Colegiado acompanhou o voto do Diretor-Relator, com as considerações constantes da manifestação apresentada pelo Diretor Luiz Antonio de Sampaio Campos, no sentido de que o direito de recesso, em casos de mudança de objeto social, não dispensa a prévia deliberação assemblear e que a […] deve promover convocação de assembleia geral para deliberar. A Diretora Norma Parente também apresentou manifestação de voto.

Obviamente que, se efetivada a mudança de objeto “de fato”, sem decisão assemblear prévia, os acionistas minoritários poderiam convocar tal conclave, nos termos do art. 123, parágrafo único, “b” da Lei 6.404/76, como também já entendeu o colegiado da CVM.

Resposta à terceira questão:

O pagamento ao acionista que se retira é tecnicamente denominado de reembolso do valor de suas ações.

Preliminarmente, devemos observar que uma companhia – e as ações que compõem seu patrimônio líquido – não possuem um único valor. De fato, conforme o critério a ser observado na avaliação da atividade empresarial, pode-se chegar a valores distintos. Exemplificando tal fato, podemos observar os seguintes valores para uma companhia:

  • Valor contábil ou patrimonial: aquele valor estabelecido no balanço aprovado;
  • Valor econômico: valor obtido por avaliação específica da atividade empresarial, usualmente determinado por critérios de múltiplos de mercado, fluxo de caixa descontado ou outros;
  • Valor de mercado: montante correspondente ao preço das ações negociadas em bolsa.

Para uma explicação mais pormenorizada do valor de uma atividade empresarial, consulte nosso artigo Quanto vale uma empresa? aqui no blog direito empresarial.

De acordo com a Lei 6.404/76, o reembolso deve ocorrer nos seguintes termos (art. 45, § 1º):

§ 1º O estatuto pode estabelecer normas para a determinação do valor de reembolso, que, entretanto, somente poderá ser inferior ao valor de patrimônio líquido constante do último balanço aprovado pela assembleia-geral, observado o disposto no § 2º, se estipulado com base no valor econômico da companhia, a ser apurado em avaliação (§§ 3º e 4º).

Veja-se, portanto, que:

  • O estatuto é livre para fixar um critério de valoração para os casos de reembolso do acionista dissidente;
  • O valor contábil do patrimônio líquido serve de base mínima para o reembolso. Tal valor só pode ser menor se apurado mediante avaliação que estabeleça o correto critério econômico de avaliação das ações [1].

No caso ora discutido, suponhamos que o estatuto da Stark Industries determinasse que o reembolso dos acionistas dissidentes que exercessem seu direito de retirada se daria pelo valor contábil do patrimônio líquido. Ao mesmo tempo, diante da comunicação de Tony Stark, o valor de mercado das ações da Stark Industries fosse inferior a seu valor contábil. Nesse caso, poderia ser vantajoso ao acionista exercer seu direito de recesso ao invés de vender suas ações em bolsa.

Deve-se ter presente que, como o reembolso envolve o pagamento pela companhia de um montante ao acionista que se retira, a lei facultou a esta última voltar atrás em sua posição que levou ao exercício do direito de recesso (art. 137, §3º da Lei 6.404/76).

Haveria abuso do poder de controle por Tony Stark?

Este é um dos pontos mais difíceis de estabelecer, dentre os tratados neste artigo.

Isto porque o abuso de poder de controle é instituto de definição e configuração amplas, que necessita, quase sempre, de uma interpretação para que se determine sua existência em dado caso concreto.

Vejamos o que diz a Lei 6.404/76:

Art. 117. O acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder.

§ 1º São modalidades de exercício abusivo de poder:

a) orientar a companhia para fim estranho ao objeto social ou lesivo ao interesse nacional, ou levá-la a favorecer outra sociedade, brasileira ou estrangeira, em prejuízo da participação dos acionistas minoritários nos lucros ou no acervo da companhia, ou da economia nacional;

b) promover a liquidação de companhia próspera, ou a transformação, incorporação, fusão ou cisão da companhia, com o fim de obter, para si ou para outrem, vantagem indevida, em prejuízo dos demais acionistas, dos que trabalham na empresa ou dos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia;

c) promover alteração estatutária, emissão de valores mobiliários ou adoção de políticas ou decisões que não tenham por fim o interesse da companhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários, aos que trabalham na empresa ou aos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia;

d) eleger administrador ou fiscal que sabe inapto, moral ou tecnicamente;

e) induzir, ou tentar induzir, administrador ou fiscal a praticar ato ilegal, ou, descumprindo seus deveres definidos nesta Lei e no estatuto, promover, contra o interesse da companhia, sua ratificação pela assembleia-geral;

f) contratar com a companhia, diretamente ou através de outrem, ou de sociedade na qual tenha interesse, em condições de favorecimento ou não equitativas;

g) aprovar ou fazer aprovar contas irregulares de administradores, por favorecimento pessoal, ou deixar de apurar denúncia que saiba ou devesse saber procedente, ou que justifique fundada suspeita de irregularidade.

h) subscrever ações, para os fins do disposto no art. 170, com a realização em bens estranhos ao objeto social da companhia.

Dois pontos poderiam imediatamente ser colocados como pacíficos: (1) a lista supracitada é meramente exemplificativa e não exaustiva; (2) a mera mudança de objeto social, por si só, não configuraria abuso de poder de controle, sob pena de se engessar qualquer companhia. Eventual abuso estaria na forma, na motivação e nas consequências de tal mudança.

No caso concreto, embora tais conclusões estejam sempre sujeitas a divergências, entendemos que houve abuso de poder de controle por parte de Tony Stark. E isso pelos seguintes motivos:

  • A descontinuidade imediata da produção de armas levaria à ilícita quebra de contratos com o governo, com a imposição das consequentes penalizações à companhia (multas, inabilitação para licitações, etc.), além da perda de lucratividade e de empregos daí decorrentes;
  • O motivo da descontinuidade fora a vontade egoística de Tony Stark, em virtude de possível estresse pós-traumático, e não o interesse da companhia. Embora o motivo possa ser retratado como nobre no filme (evitar o contrabando de armas ou mesmo promover o desarmamento e a paz entre países e grupos guerrilheiros), haveria outras formas muito mais eficazes de evitar tais percalços: Tony Stark poderia denunciar os autores do possível contrabando às autoridades ou à imprensa, para que providências fossem tomadas. Poderia desenvolver armas com menor grau de letalidade, etc.

Verifique-se que se o controlador consegue aprovar em assembleia a mudança do objeto social em virtude de que a atividade correspondente não se mostra mais lucrativa ou com o fim de que a companhia rume a outra área de negócios mais rentável, ele age no interesse legítimo da companhia e dos acionistas. Não o faz, porém, se a modificação, além de prejudicial à rentabilidade da companhia, é motivada por suposta preocupação com o desarmamento e o contrabando, cujas consequências teria outros meios mais eficazes para evitar.

Assim, entendemos que Tony Stark teria orientado a Stark Industries para fim estranho ao objeto social, além de promover alteração estatutária e adoção de políticas e decisões que não tiveram por fim o interesse da companhia e que causaram prejuízo a acionistas minoritários, aos que trabalham na empresa e aos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia.

Diante do abuso de poder de controle, Tony Stark poderia, em nosso entendimento, responder judicialmente pelos prejuízos causados.

Como a Stark Industries deveria comunicar uma eventual descontinuidade de parte de suas operações nas demonstrações contábeis?

É preciso entender que as demonstrações contábeis são uma base importante para a tomada de decisões em relação a dada companhia.

Dentre as demonstrações mais utilizadas pelos investidores, está a Demonstração de Resultado do Exercício (DRE), que visa a evidenciar, contabilmente, o resultado da companhia, notadamente as receitas e despesas geradas pela atividade e seu lucro ou prejuízo.

Ocorre que, na forma usualmente apresentada, a DRE pode levar o usuário da informação contábil a entender que existem bases razoáveis para que as receitas apresentadas pela atividade operacional da companhia se sustentem nos próximos exercícios em patamares semelhantes ao apurado nos exercícios passados, ressalvada a ocorrência de algum fato excepcional.

Assim, se uma grande companhia aberta apresenta em sua última DRE um valor de R$ 1 bilhão como receitas operacionais, o usuário pode supor que, salvo motivo excepcional, a atividade deverá se manter gerando receitas semelhantes nos próximos exercícios. Essa suposição pode ser ainda mais enfatizada quando as receitas de mais de um dos exercícios anteriores tenham se mantido em níveis similares.

Tal pressuposto, entretanto, deixa de ser verdade quando parte das operações de uma companhia é descontinuada durante um exercício. Nesse caso, é obrigação da companhia revelar esse fato em suas demonstrações contábeis, separando o resultado das operações descontinuadas, daquele concernente às operações que continuam em atividade.

Nesse sentido, o Pronunciamento n. 31 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) dispõe que em caso de descontinuação, deve ser apresentada essa circunstância separando-se os resultados, bens e fluxos de caixa, seja por meio de notas explicativas ou na própria demonstração de resultado.

Digitalizamos a seguir o exemplo dado pelo próprio Pronunciamento n. 31 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) de DRE em que haja operação descontinuada.

Exemplo CPC 31

Dessa forma, a Stark Industries, caso viesse a descontinuar suas atividades referentes à produção de armas, deveria evidenciar tal circunstância em seus demonstrativos contábeis.

Conclusões

De tudo que discutimos neste artigo, concluímos que:

  1. Tony Stark, para conseguir seu intento, deveria ter submetido sua decisão imediatamente à assembleia de acionistas e poderia ter dificuldades em sua aprovação;
  2. Ele não obedeceu as diretrizes para comunicação de fato relevante ao mercado;
  3. A mudança de objeto social daria direito de retirada aos acionistas dissidentes;
  4. Houve abuso de poder de controle por parte de Tony Stark;
  5. A Stark Industries, caso descontinuasse sua produção bélica, deveria inserir tal informação em seus demonstrativos contábeis, nos termos do Pronunciamento n. 31 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC).


[1] Não é incomum encontrarmos acórdãos que mesmo diante da disposição estatutária de reembolso pelo valor contábil, estabelecem a necessidade de avaliação por critérios mais consentâneos de avaliação econômica, principalmente quando os valores contábeis não representam a realidade do valor da atividade empresarial. Nesse sentido o julgado do STJ no REsp 51655 / RJ, Relator(a) Ministro PAULO COSTA LEITE (353), T3 - TERCEIRA TURMA, Data do Julgamento 03/12/1996, Data da Publicação/Fonte DJ 03/03/1997 p. 4638, Ementa: SOCIEDADE ANONIMA. DIREITO DE RETIRADA. VALOR DAS AÇÕES. FORMA DE PAGAMENTO. NÃO E JURIDICAMENTE ACEITAVEL, NEM MORALMENTE JUSTIFICAVEL, SEJA O ACIONISTA DISSIDENTE COMPELIDO A ACEITAR A OFERTA DA MAIORIA, MORMENTE EM SE TRATANDO DE OFERTA IRRISORIA. "SE O DIREITO DE RECESSO FOR EXERCIDO NUMA SITUAÇÃO DE ABSOLUTA INIQUIDADE, COMO REFERIDO NOS AUTOS, NÃO HA O EXERCICIO DESSE DIREITO, SENÃO NA ABSTRAÇÃO DA FORMULA". EM TAL ASPECTO, O ACORDÃO RECORRIDO NÃO OFENDEU O ART. 137 DA LEI 6.404/1976, AO ASSIM DECIDIR: "PONTO SENSIVEL E O "MODUS FACIENDI" QUANTO A PAGA DO VALOR DA AÇÃO, DECORRENTE DO RECESSO, CERTO QUE ESTE, POR REPRESENTAR MENSURAVEIS INTERESSES ECONOMICOS, PARA SER JUSTO, EVITANDO O ENRIQUECIMENTO DA SOCIEDADE, ASSIM BENEFICIANDO A MAIORIA, COM O EMPOBRECIMENTO DOS RETIRANTES, A MINORIA, HA DE CORRESPONDER AOS VALORES DO PATRIMONIO SOCIETARIO PROXIMOS, TANTO QUANTO POSSIVEL, DO REAL, E NÃO DO HISTORICO, QUANDO NÃO MERAMENTE SIMBOLICOS, CONSTANTES DOS LANÇAMENTOS CONTABEIS". RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. VOTOS VENCIDOS.

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12 comentários:

  1. Excelente! Lúdico e muito informativo!

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    1. Alexandre, excelente, estou lendo um a um, muito bom, parabéns, não sou fã de direito empresarial mais o material aqui é de ótima qualidade. abraço

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    2. Muito bom saber disso! Realmente direito empresarial é uma matéria normalmente não muito querida por nossos estudantes. Torná-la mais agradável e estimular seu estudo é um dos grandes propósitos do blog.

      Grande abraço!

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  2. Muito bom esse artigo! Diferente, interessante e bom para estudar!

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  3. Artigo excelente, pois a ficção acaba por tornar mais interessante o Direito Empresarial!

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  4. Excelente trabalho. Análise perfeita e muito bem feita para analisar uma série de conceitos fundamentais de direito empresarial.

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