Os crimes falimentares no Projeto de Código Penal

Objeto de intensa divulgação, o Projeto de Código Penal, (Projeto de Lei do Senado, n. 236 de 2012) elaborado por uma Comissão de Juristas especialmente designada para tanto, traz em seu conteúdo a previsão dos crimes falimentares, revogando, nessa parte, as disposições da Lei 11.101/05.

A questão a ser examinada neste artigo consiste em saber como o assunto foi regulado no projeto supracitado e se o novo tratamento trará ou não melhorias na disciplina da matéria.

Para que nossos leitores fiquem bem informados, o Prof. Alexandre Demetrius Pereira traz a seguir  analise pormenorizada sobre as mudanças propostas. Continue lendo!!

Cumpre verificar neste artigo quais foram as propostas de mudança trazidas pelo Projeto de Código Penal no que toca aos crimes falimentares, analisando o teor e a qualidade do que foi apresentado.

Para os leitores que desejarem ter acesso ao inteiro teor do Projeto de Código Penal, selecionamos dois endereços em que citado projeto e o relatório final da comissão elaboradora podem ser localizados no site do Senado Federal (clique aqui para o projeto ou aqui para o relatório final da Comissão).

Preliminarmente, traremos alguns quadros comparativos, para que os leitores tenham uma visão geral do que está em vigor a respeito dos crimes falimentares na Lei 11.101/05 e o que propõe o projeto aludido.

Quadros comparativos

É importante salientar que o Projeto de Código Penal revogará, se aprovado, os arts. 168 a 182 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.

Para facilitar o trabalho de comparação, as tabelas seguintes trazem ao leitor alguns quadros para cotejo e exame simultâneo entre a atual legislação falimentar (Lei n. 11.101/05) e o Projeto do Código Penal.

Na primeira tabela, demonstramos as descrições típicas de cada crime. Deixamos de reproduzir, excepcionalmente, os parágrafos do delito de fraude a credores (definido como “fraude contra falência ou recuperação” no PLS n. 236/12), dada a excessividade de texto. As redações da legislação atual e do projeto, entretanto, continuaram praticamente idênticas nesse aspecto. 

Tabela 1: comparativo entre os tipos penais previstos e suas descrições típicas.

Lei 11.101/05

Projeto de Código Penal (PLS n. 236/12)

Crime

Descrição típica

Crime

Descrição típica

Fraude a Credores

 

Art. 168

Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem.

 

Fraude contra falência ou recuperação judicial ou extrajudicial

 

Art. 375

Praticar ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos  credores, antes ou depois da sentença que decretar a falência, ou que conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem.

Violação de sigilo empresarial

 

Art. 169

Violar, explorar ou divulgar, sem justa causa, sigilo empresarial ou dados confidenciais sobre operações ou serviços, contribuindo para a condução do devedor a estado de inviabilidade econômica ou financeira

Violação de sigilo empresarial

 

Art. 376

Violar, explorar ou divulgar, sem justa causa, sigilo empresarial ou dados  confidenciais sobre operações ou serviços, contribuindo para a condução do devedor  a estado de inviabilidade econômica ou financeira.

Divulgação de informações falsas

 

Art.170

Divulgar ou propalar, por qualquer meio, informação falsa sobre devedor em recuperação judicial, com o fim de levá-lo à falência ou de obter vantagem.

 

Divulgação de informações falsas

 

Art. 377

Divulgar, por qualquer meio, informação falsa sobre devedor em recuperação judicial, com o fim de levá-lo à falência ou de obter vantagem.

Indução a erro

 

Art. 171

Sonegar ou omitir informações ou prestar informações falsas no processo de falência, de recuperação judicial ou de recuperação extrajudicial, com o fim de induzir a erro o juiz, o Ministério Público, os credores, a assembleia-geral de credores, o Comitê ou o administrador judicial

Indução a erro

 

Art. 378

Sonegar ou omitir informações ou prestar informações falsas no processo de falência, de recuperação judicial ou extrajudicial, com o fim de induzir a erro o juiz, o Ministério Público, os credores, a assembleia-geral de credores, o Comitê ou o  administrador judicial.

Favorecimento de credores

 

Art. 172

 

Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar plano de recuperação extrajudicial, ato de disposição ou oneração patrimonial ou gerador de obrigação, destinado a favorecer um ou mais credores em prejuízo dos demais.

Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre o credor que, em conluio, possa beneficiar-se de ato previsto no caput deste artigo.

Favorecimento de credores

 

Art. 379

Praticar ato de disposição ou oneração patrimonial ou gerador de obrigação, destinado a favorecer um ou mais credores em prejuízo dos demais, antes  ou depois da sentença que decretar a falência, que conceder a recuperação judicial ou

homologar plano de recuperação extrajudicial.

 

Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre o credor que, em conluio com o agente, possa beneficiar-se de ato previsto no caput deste artigo.

Desvio, ocultação ou apropriação de bens

 

Art.173

Apropriar-se, desviar ou ocultar bens pertencentes ao devedor sob recuperação judicial ou à massa falida, inclusive por meio da aquisição por interposta pessoa

Desvio, ocultação ou apropriação de bens

 

Art. 380

Apropriar-se, desviar ou ocultar bens pertencentes ao devedor sob recuperação judicial ou à massa falida, inclusive por meio da aquisição por interposta pessoa.

Aquisição, recebimento ou uso ilegal de bens

 

Art. 174

Adquirir, receber, usar, ilicitamente, bem que sabe pertencer à massa falida ou influir para que terceiro, de boa-fé, o adquira, receba ou use

Aquisição, recebimento ou uso ilegal de bens

 

Art. 381

Adquirir, receber, usar, ilicitamente, bem que sabe pertencer à massa falida ou influir para que terceiro, de boa-fé, o adquira, receba ou use.

Habilitação ilegal de crédito

 

Art. 175

Apresentar, em falência, recuperação judicial ou recuperação extrajudicial, relação de créditos, habilitação de créditos ou reclamação falsas, ou juntar a elas título falso ou simulado

Habilitação ilegal de crédito

 

Art. 382

Apresentar, em falência, recuperação judicial ou recuperação extrajudicial, relação de créditos, habilitação de créditos ou reclamação falsas, ou juntar a elas título falso ou simulado.

Exercício ilegal de atividade

 

Art. 176

Exercer atividade para a qual foi inabilitado ou incapacitado por decisão judicial, nos termos desta Lei

Não previsto

Violação de impedimento

 

Art. 177

Adquirir o juiz, o representante do Ministério Público, o administrador judicial, o gestor judicial, o perito, o avaliador, o escrivão, o oficial de justiça ou o leiloeiro, por si ou por interposta pessoa, bens de massa falida ou de devedor em recuperação judicial, ou, em relação a estes, entrar em alguma especulação de lucro, quando tenham atuado nos respectivos processos

Violação de impedimento

Art. 383

 

Adquirir o juiz, o órgão do Ministério Público, o administrador judicial, o gestor judicial, o perito, o avaliador, o escrivão, o oficial de justiça ou o leiloeiro, por si ou por interposta pessoa, bens de massa falida ou de devedor em recuperação judicial, ou, em relação a estes, entrar em alguma especulação de lucro, quando tenham atuado nos respectivos processos.

Omissão de documentos contábeis obrigatórios

 

Art. 178

Deixar de elaborar, escriturar ou autenticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar o plano de recuperação extrajudicial, os documentos de escrituração contábil obrigatórios

Não previsto

Na segunda tabela, trouxemos mais especificamente as penas cominadas a cada delito, para que o leitor pudesse cotejá-las.

Tabela 2: comparativo entre penas cominadas aos crimes falimentares.

Lei 11.101/05

Projeto de Código Penal (PLS n.236/12)

Crime

Pena cominada

Crime

Pena cominada

Fraude a
credores

Reclusão

3 (três) a 6 (seis) anos e multa

Fraude contra falência ou recuperação judicial ou extrajudicial

Prisão

2 (dois) a 6 (seis) anos

Violação de sigilo
empresarial

Reclusão

2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa

Violação de sigilo empresarial

Prisão

2 (dois) a 4 (quatro) anos

Divulgação de informações falsas

Reclusão

2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa

Divulgação de informações falsas

Prisão

2 (dois) a 4 (quatro) anos

Indução a
erro

Reclusão

2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa

Indução a erro

Prisão

2 (dois) a 4 (quatro) anos

Favorecimento de credores

Reclusão

2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa

Favorecimento de credores

Prisão

2 (dois) a 5 (cinco) anos

Desvio, ocultação ou apropriação de bens

Reclusão

2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa

Desvio, ocultação ou apropriação de bens

Prisão

2 (dois) a 4 (quatro) anos

Aquisição, recebimento ou uso ilegal de bens

Reclusão

2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa

Aquisição, recebimento ou uso ilegal de bens

Prisão

2 (dois) a 4 (quatro) anos

Habilitação ilegal de crédito

Reclusão

2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa

Habilitação ilegal de crédito

Prisão

2 (dois) a 4 (quatro) anos

Exercício ilegal de atividade

Reclusão

1 (um) a 4 (quatro) anos e multa

Exercício ilegal de atividade

Não previsto

Violação de impedimento

Reclusão

2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa

Violação de impedimento

Prisão

2 (dois) a 12 (doze) anos

Omissão de documentos contábeis obrigatórios

Detenção

1 (um) a 2 (dois) anos e multa

Omissão de documentos contábeis obrigatórios

Não previsto

Na terceira e última tabela, trouxemos o comparativo entre as disposições comuns da Lei 11.101/05 e do PLS n. 236/12 no tocante aos crimes falimentares.

Tabela 3: comparativo entre disposições comuns

Lei 11.101/05

Projeto de Código Penal (PLS n. 236/12)

Art. 179. Na falência, na recuperação judicial e na recuperação extrajudicial de sociedades, os seus sócios, diretores, gerentes, administradores e conselheiros, de fato ou de direito, bem como o administrador judicial, equiparam-se ao devedor ou falido para todos os efeitos penais decorrentes desta Lei, na medida de sua culpabilidade.

Art. 384. Na falência, na recuperação judicial e na recuperação extrajudicial de sociedades, os seus sócios, diretores, gerentes, administradores e conselheiros, de fato

ou de direito, bem como o administrador judicial, equiparam-se ao devedor ou falido  para todos os efeitos penais, na medida de sua culpabilidade

Art. 180. A sentença que decreta a falência, concede a recuperação judicial ou concede a recuperação extrajudicial de que trata o art. 163 desta Lei é condição objetiva de punibilidade das infrações penais descritas nesta Lei.

  

Não reproduzido

Art. 181. São efeitos da condenação por crime previsto nesta Lei:

 

I – a inabilitação para o exercício de atividade empresarial;

II – o impedimento para o exercício de cargo ou função em conselho de administração, diretoria ou gerência das sociedades sujeitas a esta Lei;

III – a impossibilidade de gerir empresa por mandato ou por gestão de negócio.

 

§ 1º Os efeitos de que trata este artigo não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença, e perdurarão até 5 (cinco) anos após a extinção da punibilidade, podendo, contudo, cessar antes pela reabilitação penal.

 

§ 2º Transitada em julgado a sentença penal condenatória, será notificado o Registro Público de Empresas para que tome as medidas necessárias para impedir novo registro em nome dos inabilitados.

 

Art. 385. São efeitos da condenação por crime previsto neste Capítulo:

 

I – a inabilitação para o exercício de atividade empresarial;

II – o impedimento para o exercício de cargo ou função em conselho de  administração, diretoria ou gerência das sociedades;

III – a impossibilidade de gerir empresa por mandato ou por gestão de negócio.

 

§ 1º Os efeitos de que trata este artigo deverão ser motivadamente declarados na sentença.

 

§ 2º Transitada em julgado a sentença penal condenatória, será notificado o Registro Público de Empresas

 

Art. 182. A prescrição dos crimes previstos nesta Lei reger-se-á pelas disposições do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, começando a correr do dia da decretação da falência, da concessão da recuperação judicial ou da homologação do plano de recuperação extrajudicial.

 

 Parágrafo único. A decretação da falência do devedor interrompe a prescrição cuja contagem tenha iniciado com a concessão da recuperação judicial ou com a homologação do plano de recuperação extrajudicial

Termo inicial da prescrição antes de transitar em julgado a sentença final

 

Art. 111. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr:

 

[...]

 

VI –  nos crimes falimentares, do dia da decretação da falência, da concessão da  recuperação judicial ou da homologação do plano de recuperação extrajudicial.

Vistas as tabelas comparativas anteriormente transcritas, passaremos a analisar nos próximos tópicos as principais mudanças propostas e suas consequências.

A redação dos tipos penais

A primeira leitura das tabelas supracitadas faz com que tenhamos uma breve noção do que ocorreu.

Analisemos a redação dos tipos penais falimentares.

Primeiramente, podemos verificar que a Lei 11.101/05 traz 11 (onze) tipos penais falimentares. O PLS n. 236/12 os reduz para 9 (nove), suprimindo os tipos penais de exercício ilegal de atividade e omissão de documentos contábeis obrigatórios, em relação aos quais haverá o fenômeno da abolitio criminis.

Dos nove tipos penais mantidos, há pequena alteração de nomenclatura no delito de fraude contra credores (que passa a se chamar “fraude contra falência ou recuperação judicial ou extrajudicial”), mantida, no mais, a redação do tipo penal aludido.

Há também ligeira alteração redacional no crime de divulgação de informações falsas, suprimindo-se o verbo “propalar”.

Em suma: tivemos basicamente 4 (quatro) modificações (duas supressões e duas alterações), considerando apenas as descrições típicas dos crimes. Nos demais delitos, a redação é, de maneira geral, mera transposição para o Projeto de Código do que já havia na legislação falimentar.

Tal trabalho, a nosso ver, merece inúmeras críticas.

Primeiramente, a revogação dos dois tipos penais supracitados não se justifica.

Os documentos contábeis obrigatórios do devedor falido ou em recuperação são essenciais para a descoberta do passivo submetido a tais procedimentos. Revogar o delito em questão retira um dos únicos incentivos para que o devedor mantenha em dia sua escrituração contábil.

Tal postura, aliás, parece divergir do que ocorre com a maior parte dos ordenamentos de países mais desenvolvidos. No ordenamento italiano, por exemplo, o R.D. 267, de 16 de março 1942, pune com reclusão de três a dez anos, em seu art. 216, o delito de bancarrota fraudulenta, cuja tipicidade prevê a conduta do devedor que subtrai, destrói ou falsifica seus livros e sua escrituração, conforme redação a seguir transcrita (g.n.):

È punito con la reclusione da tre a dieci anni, se è dichiarato fallito, l'imprenditore, che:

[…]

2) ha sottratto, distrutto o falsificato, in tutto o in parte, con lo scopo di procurare a sé o ad altri un ingiusto profitto o di recare pregiudizi ai creditori, i libri o le altre scritture contabili o li ha tenuti in guisa da non rendere possibile la ricostruzione del patrimonio o del movimento degli affari.

Do mesmo modo, no ordenamento francês, o Code de Commerce também estipula sanções penais para a contabilidade incompleta ou irregular, nos termos transcritos a seguir (g.n.):

Article L654-2

En cas d'ouverture d'une procédure de redressement judiciaire ou de liquidation judiciaire, sont coupables de banqueroute les personnes mentionnées à l'article L. 654-1 contre lesquelles a été relevé l'un des faits ci-après :

[…]

5° Avoir tenu une comptabilité manifestement incomplète ou irrégulière au regard des dispositions légales.

Article L654-3

La banqueroute est punie de cinq ans d'emprisonnement et de 75000 euros d'amende.

Não vemos razão, portanto, para a supressão do delito hoje definido no art. 178 da Lei 11.101/05 (omissão de documentos contábeis obrigatórios). Ao contrário, há motivos de sobra para justificar a manutenção do dispositivo, principalmente no que concerne a estimular a prática regular de escrituração por parte dos devedores falidos ou em recuperação.

Já no que toca ao delito de exercício ilegal de atividade (art. 176 da Lei 11.101/05), também não vislumbramos razão para sua revogação. Como se sabe, há uma série de circunstâncias em  que a legislação falimentar estipula vedações ao exercício de atividades pelo devedor, cujo descumprimento configura o delito do art. 176 da Lei 11.101/05, dentre as quais, aquelas que elencamos em nossa obra Crimes Falimentares – Teoria, prática e questões de concursos (Ed. Malheiros, 2010):

1. Quando o falido venha a exercer atividade empresarial depois de inabilitado para o exercício do comércio pela decretação da falência, anteriormente à extinção das obrigações (art. 102 da Lei 11.101/05);

2. Quando o devedor em recuperação retornar à atividade empresarial após determinação judicial de seu afastamento (art. 64 e 65 da Lei 11.101/05);

3. Quando o devedor venha a exercer atividade empresarial após condenação por crime falimentar com trânsito em julgado, durante seus efeitos, sem prévia reabilitação;

4. Quando, após condenação criminal por delito falimentar, durante seus efeitos, e sem prévia reabilitação, venha o devedor a exercer cargo ou função em conselho de administração, diretoria ou gerência de sociedade, ou venha a gerir empresa por mandato ou por gestão de negócio.

Nessas hipóteses, é de todo recomendável que o Direito Penal contenha tipo específico falimentar para tutelar o descumprimento das determinações judiciais supracitadas e, por via oblíqua, desestimular o devedor a adotar quaisquer das práticas que eventualmente venham a ser vedadas pelo juízo falimentar.

Por seu turno, a alteração referente ao crime de divulgação de informações falsas é praticamente inócua, pois a supressão da expressão “propalar” no delito de divulgação de informações falsas é  inútil, pois basta consultar o Dicionário Aurélio para verificar que o significado dos verbos “divulgar” e “propalar” é praticamente o mesmo. [1]

Do mesmo modo, a alteração da nomenclatura do crime de fraude contra credores, passando a se chamar “fraude contra falência ou recuperação judicial ou extrajudicial”, parece-nos, além de inócua, equivocada. De fato, a vítima da fraude não é a falência ou a recuperação, mas os credores cujos créditos são submetidos a esses procedimentos. A fraude, portanto, opera-se contra o interesse dos credores, não contra os processos mencionados.

Nenhum avanço em matéria de crimes falimentares

Ao se limitar, na esmagadora maioria dos tipos penais falimentares, a realizar mera reprodução dos tipos já existentes na Lei 11.101/05, o PLS n. 236/12 perderá ótima oportunidade para avançar na regulamentação desse tema.

Dentre os avanços possíveis, não realizados pelo projeto aludido, citamos as seguintes situações:

  1. Separação entre os conceitos de empresa (atividade) e empresário (pessoa física ou jurídica que exerce a atividade): tradicionalmente, em nossa legislação, os conceitos de empresa e empresário foram confundidos em matéria de crimes falimentares. Essa confusão persiste em nossa legislação atual e tem consequências práticas de monta. Referimo-nos principalmente à proibição de que o empresário condenado por crime falimentar obtenha o benefício da recuperação (art. 48, IV, da Lei 11.101/05). Ao impedir tal benefício, nosso ordenamento condena a empresa (atividade) e os benefícios que ela gera à sociedade (empregos, tributos, bens e serviços, etc.) pela conduta de quem a exerce ou dirige (empresário), ignorando a separação entre empresa e empresário. O correto seria afastar o empresário ou sócio da gestão de seus negócios nos casos em que isso fosse recomendável, permitindo sempre a preservação da empresa;
  2. Omissão de tipos penais relevantes, presentes na legislação estrangeira: há vários tipos penais falimentares presentes na legislação penal estrangeira que nunca foram incluídos na legislação brasileira, dentre os quais citamos alguns crimes tipificados na legislação norte-americana: (1) a utilização do processo de recuperação ou falência como meio de fraude [2]; (2) a tipificação de crime específico para os casos de oferta de vantagem a credores (ou seu efetivo recebimento), com o fim de praticar ou omitir comportamento em leilões ou em aprovação de planos em processos de recuperação [3];
  3. Ausência de condição de punibilidade para crimes falimentares ocorridos em procedimentos de intervenção ou liquidação extrajudicial: muito embora alguns delitos cometidos por gestores de instituições financeiras ou equiparadas sujeitas a referidos procedimentos possam configurar crimes contra o sistema financeiro nacional, bem como a existência de crimes falimentares seja usualmente motivo para a conversão de tais procedimentos em falência, a decisão de intervenção e liquidação, em nosso ordenamento, não possibilita, por si só, a apuração de crimes falimentares, por não se configurar em condição objetiva de punibilidade. Tal fato, que não ocorre em ordenamentos alienígenas (v.g. a legislação italiana) pode deixar sem punição delitos de grande monta; [4]
  4. Omissão quanto à unidade ou unicidade dos crimes falimentares: a questão da unidade ou unicidade dos crimes falimentares (punição apenas do crime falimentar mais grave no concurso de diversos crimes falimentares) não foi resolvida totalmente na Lei 11.101/05 e é objeto de franco dissenso na doutrina e na jurisprudência. Entendemos que a unidade ou unicidade é figura já ultrapassada, que não merece mais acolhida. Tal assunto, porém, mereceria menção do legislador, prevendo a forma como se daria o concurso de crimes falimentares, retirando as dúvidas dos aplicadores;
  5. Falta de correção das pequenas falhas e omissões da Lei 11.101/05: a Lei 11.101/05 tem inúmeros aspectos que poderiam ser melhorados, dentre os quais citamos: (1) as menções, nas causas de aumento de pena do delito de fraude contra credores (art. 168) da expressão “escrituração contábil ou balanço” torna atípicas as fraudes em outras demonstrações contábeis, tais como a Demonstração de Resultado do Exercício (DRE), a Demonstração de Fluxo de Caixa (DFC) e a Demonstração de Valor Adicionado (DVA); (2) não foi incluída no tipo penal do art. 175 da Lei 11.101/05 (habilitação ilegal de crédito), reproduzida no art. 382 do PLS n. 236/10, a conduta do devedor que reconhece como verdadeiros créditos falsos ou simulados, na forma antes tipificada no art. 189, III, do Dec. Lei 7.661/45; (3) No delito de desvio, ocultação ou apropriação de bens (art. 173 da Lei 11.101/05), prevê-se que a ação deve recair sobre bens do devedor em recuperação judicial ou pertencentes à massa falida. Não há crime, portanto, quando desvio de bens tenha relação com devedor que esteja em recuperação extrajudicial, por atipicidade da conduta; (4) No delito de violação de impedimento (art. 177 da Lei 11.101/05) a doutrina aponta com razão a omissão legal em relação a duas espécies de agentes, que também estariam na mesma relação de incompatibilidade dos demais sujeitos ativos definidos neste crime, qual sejam, o depositário e o advogado que houver atuado nos autos como patrono do falido, do administrador judicial ou dos demais sujeitos ativos supracitados, os quais não foram incluídos no rol dos possíveis autores do delito em questão.

As modificações nas penas

Algumas poucas modificações nas penas foram estabelecidas no PLS 236/12, a maioria delas sem qualquer efeito prático.

No delito de fraude contra credores (“fraude contra falência ou recuperação judicial ou extrajudicial”), é reduzida a pena mínima para 2 (dois) anos. Não obstante a mudança seja de pouca repercussão prática, não vemos motivo algum para a redução de pena no mais grave dos delitos falimentares.

Por outro lado, há uma inexplicável alteração de pena máxima no delito de violação de impedimento, que passa a ser de 12 (doze) anos, idêntica à pena mínima do delito de homicídio qualificado no atual Código Penal e também no PLS 236/12.

Algumas observações podem ser feitas com relação a esta última mudança mencionada:

  1. Novamente, a medida é inócua em termos práticos de aplicação de pena: concordemos ou não, qualquer um que tenha mínima vivência prática na área criminal sabe que penas máximas dificilmente são aplicadas, dada a ausência de requisitos para tanto. A possibilidade de tal pena ser efetivamente imposta, portanto, é reduzida, não servindo como medida de prevenção para dissuadir a prática criminosa;
  2. Por outro lado, o aumento de pena máxima terá o efeito de dilatar a prescrição da pretensão punitiva, que irá se operar em dezesseis anos;
  3. Nem as legislações mais severas do mundo contém pena privativa de liberdade em montante tão elevado para esse crime. Nos Estados Unidos, por exemplo, pune-se delito equivalente À violação de impedimento apenas com multa e perda do cargo ou função. [5] Parece-nos, portanto, que tal pena viola claramente o princípio da proporcionalidade. 

Por fim, cabe salientar que os delitos falimentares previstos no PLS n. 236/12 não mais preveem cumulativamente a pena de multa. Tal mudança não parece ser digna de nota, pois, de acordo com o que se verificou na  exposição de motivos da comissão elaboradora do projeto, a multa teoricamente passaria a ser prevista apenas na parte geral, devendo ser aplicada sempre quando houver prejuízo à vítima, ainda que esta seja coletiva ou difusa, nos termos da redação seguinte:

Multa
Art. 74. A multa será aplicada em todos os crimes que  tenham produzido ou possam  produzir prejuízos  materiais à vítima, ainda que coletiva ou difusa,  independentemente de que cada tipo penal a preveja  autonomamente.

A prescrição dos crimes falimentares

O PLS n. 236/12, em seu afã de trazer para si as disposições penais da legislação falimentar, cometeu vários deslizes em relação à prescrição do crime falimentar.

Primeiramente, copiou a regra de prescrição do art. 182 da Lei 11.101/05, inserindo-a em sua parte geral (art. 111, VI). Até então, nada de novo. Dois problemas sérios, porém, escaparam à atenção dos elaboradores, como passaremos a discorrer em seguida.

O primeiro problema foi omissivo e decorre da falta de suprimento de uma falha também presente na Lei 11.101/05. Com efeito, a regra prescricional do crime falimentar estabelece que a prescrição só começa a correr após a decisão de falência, concessão de recuperação judicial ou homologação do plano de recuperação extrajudicial. Nada mais justo. Considerando que tais decisões são condições objetivas de punibilidade do crime falimentar, o Estado só passa a ter o poder de punir (jus puniendi) em relação a tais delitos quando da superveniência da falência, recuperação judicial ou extrajudicial. Ora, não podendo punir os crimes antes dessas decisões, não seria justo que se contasse a prescrição a partir da data do delito, uma vez que não haveria então inércia estatal.

O gráfico seguinte ilustra a questão, na forma como é tratada na Lei 11.101/05, regra repetida no PLS 236/12, com algumas omissões:

image

Tal regra, entretanto, somente é aplicável aos crimes ocorridos antes da falência ou da recuperação judicial ou extrajudicial (crimes pré-falimentares ou pré-recuperação).

Para os crimes cometidos após a falência ou recuperação judicial ou extrajudicial (crimes pós-falimentares ou pós-recuperação), não se pode começar a contar a prescrição da data da falência, concessão da recuperação judicial ou homologação do plano de recuperação extrajudicial. Se isso ocorresse, estaríamos contando a prescrição antes do cometimento do crime, o que seria absurdo.

Ocorre que o PLS n. 236/12 novamente não prestou atenção a essa peculiaridade, limitando-se a reproduzir o que já havia na Lei 11.101/05, perdendo uma excelente oportunidade para esclarecer a aplicação do instituto prescricional aos crimes falimentares.

O segundo problema do PLS 236/12 é que ele também se esqueceu de reproduzir um importante dispositivo da Lei 11.101/05, qual seja, o que prevê a interrupção do prazo prescricional do crime falimentar quando o devedor em recuperação tem contra si a falência decretada (art. 182, parágrafo único, da Lei 11.101/05).

Os efeitos da condenação

Há problemas muito sérios nas disposições comuns do PLS n. 236/12 concernentes aos efeitos da condenação por crimes falimentares, os quais podem gerar sérias dúvidas nos aplicadores dessa norma.

Primeiro problema: no art. 181, §1º, da Lei 11.101/05, há menção expressa que  os efeitos da condenação não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença. Já o PLS 236/12, novamente com aparente açodamento, não mais declara que tais efeitos não são automáticos, reproduzindo apenas a parte que determina que os efeitos dever ser motivadamente declarados na sentença.

É bem verdade que o intuito do projeto parece ter sido o de manter os efeitos da condenação por crime falimentar como não automáticos, mas sua redação não deixa isso claro, abrindo margem para interpretações que entendam que os efeitos seriam automáticos, sendo obrigatória apenas sua motivação explícita.

Segundo problema: novamente no art. 181, §1º, da Lei 11.101/05 há menção de que os efeitos da condenação por crime falimentar perduram por 5 (cinco) anos após extinção da punibilidade, salvo anterior reabilitação. O PLS n. 236/12, porém, esquece de reproduzir essa limitação temporal, gerando dúvidas quanto à limitação no tempo dos efeitos da condenação. Do modo como está redigido, parece estabelecer efeitos de condenação perpétuos, o que seria de duvidosa constitucionalidade.

As condições objetivas de punibilidade

Outra falha do PLS n. 236/12 foi não reproduzir o art. 180 da Lei 11.101/05 (“A sentença que decreta a falência, concede a recuperação judicial ou concede a recuperação extrajudicial de que trata o art. 163 desta Lei é condição objetiva de punibilidade das infrações penais descritas nesta Lei”). Em não o fazendo, abre mais uma vez um flanco para dúvidas.

A primeira impressão é que, embora sem a devida clareza, o PLS n. 236/12 ainda considera as decisões de falência ou de recuperação como condições objetivas de punibilidade, uma vez que as leva em consideração para a contagem do prazo prescricional em seu art. 111, VI.

Isso, entretanto, pode não ser tão pacífico futuramente, sendo viável que os aplicadores dessa legislação  questionem a conclusão anteriormente exposta. Basta lembrar que nem todos os ordenamentos do mundo consideram as decisões de falência ou recuperação como uma conditio juris para a punição do crime falimentar. Ao contrário, países de tradição anglo-saxã usualmente não dispõem de tal condicionamento em suas legislações.

Conclusões

Não vislumbramos nenhuma evolução no tratamento dos crimes falimentares no PLS n. 236/12. Longe disso, cuida-se de diploma em que se faz mera reprodução do que já existe, transpondo com muitas falhas o teor de nossa atual legislação falimentar para o futuro Código Penal.

O projeto está repleto de modificações de redação sem justificativa prática, diminuições de pena em crimes graves, excessos desproporcionais de pena em crimes menores, além de imprecisões que gerarão incertezas e discussões jurídicas desnecessárias sobre matéria prescricional, efeitos de condenação, condições de punibilidade, etc.

Parece-nos que a preocupação do projeto não foi discutir, consultar e aprofundar os estudos em matéria criminal falimentar, mas a mera mudança da lei que os tipifica, o que foi feito, convenhamos, de maneira um tanto descuidada.

Ao nosso ver, duas alternativas são viáveis diante da situação exposta no texto: ou a questão deve ser deixada como está na Lei 11.101/05, ou devemos aprofundar a discussão do assunto. Isso porque aprovar o PLS n. 236/12 como se encontra pode causar muito mais prejuízos que beneficios ao tratamento da matéria criminal falimentar.


[1] Veja-se a definição mencionada do Dicionário Aurélio: “Divulgar [Do lat. divulgare.] Verbo transitivo direto. 1.Tornar público ou notório; publicar; propagar, difundir, vulgarizar: Verbo pronominal. 2.Tornar-se público ou conhecido; propagar-se, difundir-se. [Var. ant.: devulgar. Conjug.: v. largar.]”. “Propalar [Do lat. tard. propalare.] Verbo transitivo direto. 1.Tornar público: divulgar, espalhar, publicar, propagar: Verbo pronominal. 2.Propagar-se”.

[2] Bankruptcy fraudU.S. Code, Chapter 19, Title 18, § 157: “A person who, having devised or intending to devise a scheme or artifice to defraud and for the purpose of executing or concealing such a scheme or artifice or attempting to do so— (1) files a petition under title 11, including a fraudulent involuntary bankruptcy petition under section 303 of such title; (2) files a document in a proceeding under title 11, including a fraudulent involuntary bankruptcy petition under section 303 of such title; or (3) makes a false or fraudulent representation, claim, or promise concerning or in relation to a proceeding under title 11, including a fraudulent involuntary bankruptcy petition under section 303 of such title, at any time before or after the filing of the petition, or in relation to a proceeding falsely asserted to be pending under such title, shall be fined under this title, imprisoned not more than 5 years, or both.”

[3] U.S.C. §152[6]: “A person who - (6) knowingly and fraudulently gives, offers, receives, or attempts to obtain any money or property, remuneration, compensation, reward, advantage, or promise thereof for acting or forbearing to act in any case under title 11.”

[4] Tribunal de Justiça de São Paulo: CRIME FALIMENTAR - Ação penal intentada com base em liquidação extrajudicial - Inadmissibilidade - Decreto que não equivale à sentença declaratória de falência para fins penais - Denúncia rejeitada - Inteligência da Lei 6.024/74. Tribunal de Justiça de São Paulo: LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL - Ação penal nela baseada - Crime falimentar - Inadmissibilidade - Decreto que não equivale à sentença declaratória de falência para fins penais - Denúncia rejeitada - Inteligência da Lei 6.024/74.

[5] U.S. Code, title 18, part I, chapter 9, § 154[1]: “A person who, being a custodian, trustee, marshal, or other officer of the court - (1) knowingly purchases, directly or indirectly, any property of the estate of which the person is such an officer in a case under title 11 […]. Shall be fined under this title and shall forfeit the person's office, which shall thereupon become vacant”. Sobre esse delito, a doutrina norte-americana é clara. Nesse sentido STEPHANIE WICKOUSKI: “Section 154 is an infraction; no term of imprisonment can be imposed” (Bankruptcy Crimes, Beard Books, p. 74).

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