Estado e Mercado: será possível fazer as pazes?

imageNos últimos tempos, temos visto uma verdadeira guerra ideológica e prática entre defensores de posições extremadas: de um lado, aqueles que acreditam que o mercado, dada sua crueldade e desrespeito aos mais fracos, deve ser substituído integralmente pelo Estado, tal como ocorreu com a experiência socialista; de outro, aqueles que defendem a autossuficiência do mercado, que deveria operar sem qualquer regulação estatal.

Os acontecimentos mais recentes, como as crises econômicas que se iniciaram em 2008 e parecem se prolongar até os dias de hoje, põem mais lenha nessa fogueira. Há quem defenda que os ensinamentos de Marx nunca foram tão atuais e que o sistema de mercado se mostra falido atualmente. Em contrapartida, há também aqueles que atribuem tais problemas econômicos à falta de prudência estatal nos gastos, às ineficiências de gestão nos serviços públicos e aos elevados impostos, como parece ocorrer em muitos países da Europa nos dias de hoje.

Será que existe paz possível entre Estado e Mercado? Será que o radicalismo de posições nos levará a algo melhor? A questão é tão complexa que seriam necessários livros ou coletâneas para esgotá-la. Isso, porém, não impede que façamos um ensaio (mesmo que incompleto), baseando-nos o quanto possível em fatos e observações cotidianas, não em ideologias.

Continue lendo e veja mais informações sobre o tema neste artigo do Prof. Alexandre Demetrius Pereira.

Já é lugar-comum ouvirmos posições ideológicas aparentemente extremadas sobre o assunto que ora iniciamos. Dentre elas, aquelas que classificam todos os empresários como cruéis exploradores, as que defendem que os mercados funcionariam melhor se estiverem livres de qualquer interferência do Estado, as que dizem que o Estado socialista não funcionou porque foi implantado nos países errados, etc.

Ultimamente, isso tudo vem sendo radicalizado. Com a crise econômica, aumenta a busca de culpados. O embate que, durante muito tempo, ocupou somente a pena de escritores ilustres, vem tomando corpo e invadindo as ruas. Veja-se, por exemplo, o que sucede com o movimento Occupy Wall Street (clique aqui para saber mais) que aponta as falhas do livre mercado. Por outro lado, são cada vez  maiores as acusações aos países da União Europeia (como Grécia, Espanha, Itália e Portugal) de sustentarem Estados perdulários e irresponsáveis, cujos gastos teriam sido o estopim da crise atual.

Quem estaria com a razão? Poderíamos ensaiar uma resposta preliminar: todos e ninguém.

Primeiramente, porque nenhuma das posturas radicais parece estar baseada em algo concreto. Ao invés de partirem da realidade para então formarem suas conclusões, as opiniões extremadas parecem querer partir de uma moldura ideológica para nela enquadrarem os fatos, conforme estes se adaptem (normalmente de forma parcial) à doutrina defendida.

O resultado é obvio: tais argumentações são cheias de meias verdades, uma vez que a realidade, sendo muito mais complexa do que a mera ideologia, apresenta facetas favoráveis a muitos pontos de vista. Este, aliás, é um dos maiores problemas: como sempre há algo de verdade nas argumentações radicais, existe sempre um grande risco de que sejam aceitas como verdadeiras em sua totalidade.

Da forma com que o debate é colocado, todos têm razão, ao menos parcialmente. Porém, ao radicalizar, ninguém acaba apresentando argumentos totalmente procedentes.

Como dissemos no início, o assunto que ora discutimos é verdadeiramente inesgotável. Assim, pretendemos analisar aqui apenas alguns dos temas mais polêmicos, passados como verdades absolutas pelos mais extremados na defesa de suas teses. Ressaltamos ainda que não pretendemos ser donos da razão, uma vez que, neste assunto, não há certo ou errado.

“O Estado deve expulsar ou restringir o capital especulativo”

Quantas vezes ouvimos essa frase, não é mesmo? Ela costuma ficar ainda mais intensa se o capital especulativo for estrangeiro.

Embora não haja uma definição única do que signifiquem os termos especulação e capital especulativo, normalmente tais vocábulos são usados para definir o capital cujo titular somente se interessa na obtenção de ganhos rápidos, derivados usualmente da flutuação de ativos no mercado (p.ex.: da compra de ações, commodities e outros títulos negociados em bolsa).

Nos termos supracitados, muitos defendem que o capital especulativo não geraria qualquer benefício à economia (e aos agentes econômicos), principalmente no sentido de criação de empregos, o que ocorreria, inversamente, com o chamado capital produtivo, que seria constituído pelo investimento direto em atividades produtivas (indústrias, comércio, serviços e empresas em geral).

O capital especulativo, é verdade, pode ser prejudicial em alguns casos. Afinal, ele tende a ser volátil e seus rápidos movimentos de entrada e saída podem causar problemas à economia de um pais.

Mas será que poderíamos concluir pela perniciosidade do capital especulativo em qualquer caso? Seria tão simples assim exclui-lo de nossa economia? Algo que pudéssemos fazer com uma só penada? Afinal, porque não se faz logo isso e ficamos livre dessa “nociva” espécie de capital?

Porque, como dissemos, a realidade é muito mais complexa que as posições ideológicas extremadas.

Vejamos somente um exemplo, embora haja muitos outros.

Vamos supor uma indústria exportadora, que queira se proteger contra a variação (baixa) da moeda estrangeira (dólar) em que recebe o valor de suas exportações.

Uma alternativa para essa indústria é realizar uma operação de hedge, vendendo contratos futuros de dólar no mercado, fazendo com que, na liquidação futura do contrato, tenha o direito de “vender dólares” a um preço determinado. Assim, eventual perda nas exportações será compensada (ou ao menos atenuada) pelo ganho nos contratos futuros vendidos. Para saber mais sobre a operação, veja nosso artigo Você sabe o que é hedge?

Mas quem compraria os contratos futuros da empresa exportadora? Certamente, alguém que especulasse com a flutuação desse ativo, ou seja, um especulador. Tanto isso é verdade, que os próprios livros de doutrina apontam como essencial ao hedge as figuras daquele que deseja se proteger do risco (hedger) e daquele que especula com o valor do ativo respectivo (especulador). Sem essa conjugação, não poderia haver a proteção respectiva.

Talvez então o leitor pergunte: quer dizer que o capital especulativo pode ser benéfico ao capital produtivo?

A resposta é sim, sem dúvida. Não só na hipótese mencionada, mas também em muitas outras. Ressalte-se que até o movimento rápido de entrada e saída de capital especulativo pode ter um ponto positivo, ao impedir (ou evitar), pela rápida movimentação, que governos executem políticas macroeconômicas desastrosas.

Por isso, a ideia veiculada por muitos radicais de que todo capital especulativo deve ser banido é falha e não corresponde à realidade.

Ressalte-se que não se defende aqui que tenhamos só capital especulativo, nem que a economia só se componha desse tipo de fonte de investimento, até porque ele traz consigo outros males, como sua volatilidade. Não está correto, porém, defender de modo simplista que todo investimento especulativo é prejudicial.

“O mercado deve funcionar sem nenhuma intervenção do Estado”

Eis mais uma ideia muito defendida que não se mostrou real.

Richard Posner, ilustre escritor norte-americano, mesmo sendo conhecido como defensor de posturas mais “liberais” mostra muito bem em seu livro “A faliure of capitalism” como a falta de regulação sobre as operações dos bancos que negociavam no mercado sub prime (deregulation movement), a liberdade para gestores envolverem companhias em operações de alto risco buscando bônus pessoais (short term profit maximization), a ideia de autossuficiência dos mercados e outros institutos modernos (como a securitização de recebíveis) sem quaisquer freios, foram responsáveis pela crise de 2008.

Certamente, a crise de 2008 não foi o único exemplo em que os mercados não se mostraram suficientes para evitar seus problemas intrínsecos. A história demonstrou que os mercados não são autossuficientes e que necessitam de regulação estatal. Como defendem muitos autores de escol, a própria crise de 1929 e a famosa crise brasileira do encilhamento foram patentes exemplos de falta de regulação estatal da atuação dos agentes econômicos que acabou se mostrando catastrófica.

O chamado mito dos mercados autossuficientes, portanto, não vingou na realidade e nada que as opiniões ideológicas radicais possam trazer parece convencer algum país a desregulamentar totalmente sua economia.

Deve-se dizer, aliás, que a própria doutrina econômica defende a presença do Estado na economia como uma necessidade. Isso se daria, dentre outras, pelas seguintes questões:

  • Bens públicos: a sociedade necessita de bens que não podem ser apropriados individualmente (p.ex.: estradas, vias públicas, sistemas de infraestrutura, etc.). É comum que, diante da impossibilidade de apropriação particular (o que se costuma chamar economicamente de princípio da não exclusão), inexista interesse dos agentes econômicos em produzir tais bens, o que determina a necessária intervenção estatal supletiva;
  • Externalidades: há atividades em que os particulares acabam por remeter ou “empurrar” o respectivo custo para outros que não as produzem ou para toda a sociedade, fora do sistema de preços (p.ex.: a produção de um bem com o correspectivo custo social de poluição ambiental). Para “internalizar” esses custos aos agentes econômicos, há necessidade da intervenção estatal;
  • Imperfeições dos mercados: muitas vezes, os mercados são imperfeitos para agirem dentro de um sistema de concorrência, tendendo aos monopólios ou oligopólios, precisando da atuação estatal para orientá-los e controlá-los;
  • Falhas de informação: a atuação plena do sistema de mercado pressupõe agentes econômicos suficiente e homogeneamente informados. No entanto, nem sempre isso ocorre. Em determinadas situações (p.ex.: na relação que ordinariamente se estabelece entre fornecedor e consumidor), é comum que as informações sejam assimetricamente distribuídas. Este descompasso na distribuição das informações acaba por gerar a necessidade da intervenção estatal na regulação dos mercados;
  • Controle da inflação: usualmente, o mercado não é eficiente em controlar, por si, os processos inflacionários, razão pela qual o Estado tem de intervir na economia.

“Como o mercado não funciona, é melhor colocar o Estado em seu lugar”

Esse bordão começa a ser novamente sustentado nos últimos tempos. Em última análise, preconiza o retorno às economias centralmente planejadas e planificadas, nos moldes do que ocorreu com os países socialistas.

No entanto, ele passa longe de corresponder à realidade.

Para resumir a questão, trazemos à colação a lição do ilustre autor português Vasco Rodrigues (g.n.):

Em abstracto, os problemas anteriores poderiam, alternativamente, ser resolvidos através de uma economia centralizada em que todos os bens fossem propriedade do Estado e este decidisse o que deveria ser produzido e a quem deveria ser distribuído. A História do século XX mostra-nos muitos exemplos trágicos de fracassos na implementação de soluções deste tipo. Uma economia centralizada enfrenta duas dificuldades fundamentais. Uma é de natureza informativa: para que uma economia centralizada funcionasse de forma eficiente, o Estado teria que dispor de informação sobre as necessidades de cada cidadão e sobre os recursos e tecnologias disponíveis para a produção de cada bem; além disso, teria que dispor de capacidade para tratar essa informação em tempo útil. Mesmo com as actuais tecnologias, nenhum Estado dispõe da capacidade para recolher e tratar um tal volume de informação. Em contrapartida, numa economia de mercado assente na propriedade privada, para que a eficiência seja alcançada basta que cada agente económico disponha da informação relevante para as suas próprias decisões. A segunda dificuldade é um problema de incentivos: mesmo numa economia centralizada, as decisões são, em última análise, tomadas por pessoas que reagem aos incentivos a que estão sujeitas. Ora, enquanto numa economia de mercado os benefícios e os custos de uma determinada decisão revertem para quem a toma (na ausência de externalidades), numa economia centralizada o decisor só recebe uma pequena parte dos benefícios e custos decorrentes das suas decisões: numa economia centralizada, o incentivo para tomar decisões eficientes é muito inferior ao que se verifica numa economia de mercado (Análise Econômica do Direito. Almedina, 2007, p. 58).

A afirmação do autor bem sinaliza o que ocorreu nas economias planificadas usadas nos países socialistas: sucateamento da indústria, baixa produtividade, desabastecimento, etc.

Não há dúvida que o mercado atua de forma muito mais eficiente que o Estado nessas questões econômicas e não houve até o presente momento exemplo prático que trouxesse alguma solução que melhor equacionasse o problema.

Muitos apontam que a “mítica” eficiência do mercado na alocação dos bens na economia só beneficiaria alguns poucos. Em outras palavras, o mercado só seria eficiente para uma minoria.

Essa última afirmação também não corresponde totalmente à realidade.

Com efeito, embora não se possa desconsiderar as imperfeições do mercado, o fato é que a concorrência usualmente estabelecida entre os agentes econômicos acaba, no mais das vezes, por baratear o preço de bens e serviços na economia. Usualmente, a comparação de preço entre serviços antes oferecidos pelo Estado e posteriormente delegados a particulares revela esse fenômeno, ocorrido no Brasil nos serviços de telefonia. O aumento na concorrência em mercados antes pouco competitivos ou sujeitos a reservas de mercado (p.ex.: computadores e outros eletrodomésticos) também tem demonstrado a melhora na distribuição de bens de consumo às classes mais baixas (veja aqui interessante matéria do jornal “O Estado de São Paulo” a respeito).

Além das questões de eficiência, há de se considerar que há limites para os gastos do Estado. Com efeito, a atuação estatal na economia depende de sua capacidade arrecadatória (que é limitada) e os próprios gastos públicos encontram limites na legislação (p.ex.: as vinculações e as disposições da Lei de Responsabilidade Fiscal).

Dadas as limitações de gastos do Estado, verifica-se hoje que muitos investimentos de grande porte necessitam da colaboração e do financiamento dos agentes econômicos (particulares) que atuam no mercado.

“Então, o mercado é melhor que o Estado para combater a pobreza”

Como dissemos anteriormente, a concorrência de mercado traz benefícios à toda a população, inclusive àquela de baixa renda. No entanto, dizer que o mercado é um mecanismo apto a resolver todos os problemas relacionados à pobreza não é algo totalmente verídico.

Ainda relembrando o que antes salientamos, o mercado se mostra usualmente incapaz de conter problemas inflacionários, que atingem de forma mais pronunciada a camada composta pelos mais pobres, ante a rápida desvalorização do poder de compra da moeda, ordinariamente não protegida pelos sistemas de indexação da economia no caso da população de baixa renda.

Da mesma forma, frequentemente o mercado não é eficiente na adoção de políticas de combate ao desemprego ou na distribuição de renda. Vejamos o que dizem Fábio Giambiagi e Ana Cláudia Além:

O livre funcionamento do sistema de mercado não soluciona problemas como a existência de altos níveis de desemprego e inflação. Neste caso, há espaço para a ação do Estado no sentido de implementar políticas que visem à manutenção do funcionamento do sistema econômico o mais próximo possível do pleno emprego e da estabilidade de preços. […]

[O] livre funcionamento do sistema de mercado não garante, necessariamente, o elevado nível de emprego, a estabilidade dos preços e a taxa de crescimento do PIB desejada pela sociedade. Sendo assim, a ação do governo é fundamental para assegurar esses objetivos.

Além disso, mesmo que o sistema de mercado funcione segundo o ótimo de Pareto, ele pode estar promovendo uma distribuição de renda e/ou riqueza indesejada do ponto de vista social, o que abre um importante espaço para a ação do setor público em favor da distribuição de renda (Finanças Públicas, Teoria e Prática no Brasil. Campus. 2008, p. 8-10).

Dessa forma, a suposta autossuficiência do mercado para combater a pobreza não encerra algo correto ao todo, pois os problemas referentes à inflação, desemprego e distribuição de renda, dentre outros, não são equacionados de forma eficiente por este mecanismo.

“No Brasil, o Estado capitalista neoliberal só funciona para garantir o enriquecimento das classes favorecidas”

Os defensores dessa ideia entendem que o Estado (e sua legislação), numa economia capitalista, está apenas a serviço de garantir o privilégio de uma classe dominante.

Sustentam, muitas vezes, que o Estado (chamado de neoliberal) acaba por ser apenas um “observador”, garantindo unicamente a aplicabilidade das regras jurídicas impostas pelos detentores do capital. Pregam ainda que as regras que eventualmente sejam contrárias ao interesse capitalista consubstanciam meras concessões às classes menos favorecidas, feitas por intermédio da atuação estatal.

Essa afirmação, plena em ideologia de luta de classes, não se apresenta totalmente verdadeira, ao menos no Brasil. Ao contrário, mostra-se pouco objetiva e não apoiada em muitos fatos concretos.

Tomando como exemplo o caso brasileiro, observamos, obviamente, algumas regras jurídicas que protegem a livre iniciativa, a propriedade e os demais instrumentos de mercado. Na maior parte das vezes, porém, a liberdade e a propriedade dos agentes econômicos têm regulamentação altamente restritiva.

Vendo a Constituição Federal (art. 170), constatamos que a livre iniciativa é limitada pelos primados da soberania nacional, da função social da propriedade, da defesa do consumidor, da defesa do meio ambiente, da redução das desigualdades regionais e sociais, e dabusca do pleno emprego. A propriedade, ainda segundo a CF, deve cumprir seu valor social. Até mesmo o Código Civil, que representa o maior corpo legislativo de direito privado, veio imbuído do chamado princípio da socialidade (nos dizeres do ilustre jurista Miguel Reale), consubstanciando importantes restrições à autonomia da vontade dos particulares, como a função social do contrato e da empresa, a regulação minuciosa das sociedades limitadas, entre outras medidas.

No Brasil, os custos da regulação estatal à atividade empresária são imensos (veja nosso artigo Ser empresário no Brasil), incluindo a enorme carga tributária (em quase 40% do PIB), burocracia e custos trabalhistas que impõem gastos de mais de 100% dos valores pagos a título de remuneração ao trabalho.

Diante dessa perspectiva, é um tanto difícil admitir que tudo isso seja fruto de um “Estado neoliberal” ou que se trate de uma legislação marcada por ser mera concessão dos detentores de capital (salvo se imaginarmos que os detentores do capital sejam tão bondosos para conceder tanto ao Estado, o que não se mostra muito razoável a princípio). Inversamente, a realidade parece transparecer que o Estado brasileiro sempre teve tamanho acentuado, tendendo muito mais ao gigantismo que ao “Estado mínimo” ou “neoliberal”, como se preconiza.

Interessante sobre o assunto a lição de Roberto Campos:

São duradouros dois equívocos na paisagem brasileira. O primeiro é que, na raiz de nossos males está o capitalismo selvagem. Em verdade, o Brasil nunca chegou à fase capitalista, conquanto algumas regiões do sul do país dela se aproximam. Não ultrapassamos a fase do mercantilismo patrimonialista. O segundo é que fracassou o modelo ortodoxo de neoliberalismo. Na realidade, nem a ortodoxia monetarista, nem o liberalismo foram jamais praticados no Brasil […]

O capitalismo nunca existiu no Brasil. Como dizia Oliveira Lima, somos um país pré-capitalista ou até mesmo anticapitalista. Isso se traduz em  nossa notória incompreensão da função do lucro e da concorrência. Somos uma sociedade patrimonialista. O patrimonialismo não é mais que a forma ibérica do mercantilismo europeu do começo da Idade Moderna, isto é, o mercantilismo piorado pela influência cultural da Contra-Reforma, dos confiscos da Inquisição e dos resquícios do despotismo árabe.

Há quatro características essenciais do capitalismo: reconhecimento da propriedade privada, sinalização mediante o sistema de preços, livre acesso ao mercado pelos agentes econômicos e regras estáveis do jogo num Estado de Direito. O Brasil preenche apenas a primeira dessas condições e assim mesmo com ressalvas. O Estado é grande demais, quer como regulador quer como produtor. É o ‘estado aplasante’ como costuma dizer Antonio Paim. O Brasil não sofre de excesso de capitalismo, mas da falta dele. É por isso que fracassou o ‘estado assistencialista’. Ele só é possível onde o capitalismo permitiu enriquecimento suficiente para financiar o socialismo. É traço comum dos países socialistas e dirigistas que os assistentes vivem bem melhor que os assistidos…

Outra falência anunciada é do neoliberalismo, coisa inexistente nestas plagas. A começar pela Constituição, que não é uma suma sobre a organização do Estado e os direitos básicos, e sim um misto de regulamento trabalhista e dicionário de aspirações. Como chamar de ‘liberal’ um país que abunda em monopólios estatais e reservas de mercado?(A lanterna na popa. Topbooks, 2001, v.2, p. 1257).

“Embora se aceite o mercado, o Estado, por intermédio do Executivo e do Judiciário, na forma da regulamentação do Legislativo, deve impor rédeas curtas aos empresários e demais agentes econômicos”

É bem verdade que os mercados – e com eles a atividade empresária – deve ser regulado. O problema maior é acertar o nível exato (e os custos decorrentes) da regulação.

No Brasil, claramente, a regulação estatal sobre a a atividade empresária já se mostra excessiva, demasiadamente burocrática e por demais custosa. Somos o país da regulação. Agimos e pensamos com base em leis e normas. Todos os entes políticos e emissores de normas fazem-no ao extremo, às vezes superpondo regras contraditórias sobre o mesmo assunto. As duras penas pagas pela população pela exacerbação regulatória incluem a alta carga tributária e os custos impostos sobre nossa atividade empresária. Sobre o assunto, veja nosso artigo Ser empresário no Brasil.

O problema do excesso regulatório sobre o mercado pode-se comparar, grosso modo, a um cavalo em uma competição de equitação, domado de acordo com a pressão exercida pelas rédeas do cavaleiro: não controlado, corre-se o risco de o cavalo não realizar a prova ou fazê-lo de modo inapropriado; controlado em excesso, o animal hesita e refuga. Cabe ao cavaleiro (como às autoridades regulatórias) encontrar o justo ponto em que o controle (e a regulação) passa a ser eficiente.

É necessário, portanto, que tenhamos um nível justo, razoável e adequado de regulação dos mercados. Obviamente, não é nada fácil obtê-lo. No entanto, é preferível tentar fazer um ajuste fino na regulação, do que optar pelas alternativas mais simples da ausência ou do excesso regulatório.

Além do excesso, podem-se apontar diversos problemas na regulação do mercado brasileiro. Um dos pontos principais a serem lembrados é  que a regulação brasileira usualmente ignora os custos a ela inerentes e os efeitos econômicos indiretos dela derivados. O resultado logo aparece: o empresário não consegue fazer frente aos custos impostos pela regulação, pois isso implicaria o fechamento de seu negócio ou a perda de atratividade econômica de seus resultados; assim, normalmente acaba por cumprir parcialmente os ditames impostos, sujeitando-se frequentemente a uma situação de ilegalidade parcial (ou total) e evitação das autoridades fiscalizatórias.

É comum que a situação supracitada seja interpretada como burla voluntária e deliberada da legislação, a ser fortemente coibida. Isso também rende, muitas vezes, a pecha ao empresário de explorador dos mais necessitados e descumpridor da legislação, o que nem sempre é verdadeiro. Entenda-se: cada caso deve ser examinado conforme suas peculiaridades. É sabido que há muitos maus empresários, como em qualquer outra profissão. No entanto, imputar o descumprimento da regulação sobre a atividade econômica apenas ao empresário, talvez porque este seja a parte economicamente mais forte, nem sempre traduz a realidade, principalmente quando as autoridades regulatórias parecem não muito preocupadas com os custos das normas que criam.

Falando sobre a regulação no sistema financeiro, Gustavo Loyola doutrina:

Por outro lado, nos esforços de reforma da regulação financeira, é necessário considerar que a regulação tem custos relevantes. Não apenas o custo de observância pelos agentes e o custeio do aparato regulatório do Estado, mas também pelos seus efeitos alocativos. Uma das vítimas costumeiras da regulação é a eficiência; até certo ponto, é um preço que se pode pagar, quando se busca preservar um bem maior, qual seja a estabilidade sistêmica. Porém, há sempre um ponto a partir do qual mais regulação adiciona custos desproporcionais aos seus benefícios (Loyola, G. (2010). O futuro da regulação financeira. In: M. G. Giambiagi, Risco e Regulação (p. 67). Rio de Janeiro: Campus).

Um bom exemplo disso é a regulação de trânsito. Até certo ponto, ela evita acidentes e poupa vidas humanas. Além de um ponto ótimo, evitar os riscos do trânsito por meio da regulação acaba por inviabilizar a vida das pessoas. Veja o interessante texto seguinte de Eduardo Andrade e Regina Madalozzo:

No Brasil, os acidentes automobilísticos matam todo ano centenas de pessoas. O governo poderia intervir, baixando uma regulamentação que praticamente acabaria  com essas mortes: alterar o motor de todos os carros para que a velocidade máxima fosse de, digamos, 20 km/h! Os benefícios são claros: o mais negligente dos motoristas seria praticamente incapaz de se envolver em qualquer acidente fatal – vidas seriam salvas. E os custos? Imagine-se dirigindo numa rodovia a no máximo 20 km/h. Quanto tempo a mais você precisaria para realizar as viagens? O que você poderia fazer com o tempo extra se viajasse mais rápido? É aí que entra o custo de oportunidade. Você acha que essa política que salva vidas deveria ser implantada? (Microeconomia. São Paulo. Publifolha, 2003, p.91).

Outro problema da regulação nacional é que ela tem sérias dificuldades para se atualizar. Muitas vezes vemos setores da economia com regras que remontam a princípios do século passado, dificultando muito seu cumprimento.

Também deve ser analisada a filosofia de imposição da regulação aos respectivos destinatários, por meio das decisões do Poder Judiciário.

Há muito tempo, mesmo que possam ser citadas importantes exceções, vários autores apontam que o Judiciário assume tradicionalmente uma postura ou viés favorável ao hipossuficiente em suas decisões (e, por consequência, em detrimento da parte economicamente mais forte), o que, até certo ponto, é favorável e benéfico, para que se faça valer o justo equilíbrio de forças entre as partes e a proibição de qualquer exploração econômica.

Essa realidade não é propriamente nova, nem ocorre somente no Brasil. Veja-se, nesse sentido, o importante trecho de Piero Calamandrei a seguir:

O advogado modesto, contanto que esteja convencido de defender uma causa justa e saiba com simplicidade e clareza expor suas razões, perceberá quase sempre que os juízes, quanto mais evidente é a desproporção de forças entre os dois contraditores, mais dispostos estão, mesmo votando sua admiração ao mais capaz, a dar sua proteção ao menos dotado (Eles, os juízes, vistos por um advogado. Martins Fontes, 1995, p. 60)

Disso não destoa a lição de Fábio Ulhoa Coelho:

Por vezes, a má compreensão do alcance do princípio da indenidade se traduz numa infeliz tendência de setores do Poder Judiciário no sentido de condenar certos sujeitos de direito a indenizar outros tão somente  pelo fato de serem mais ricos. Quando o consumidor demanda o empresário, o particular processa o Estado ou o necessitado reclama do INSS, muitas vezes alguns juízes adotam um raciocínio simplista ao imputarem a responsabilidade  ao demandado. No fundamento da decisão encontram-se difusas referências à objetivação da responsabilidade e ao princípio da indenidade, mas a leitura atenta da sentença ou acórdão permite concluir que a razão verdadeira da condenação era apenas a condição econômica mais favorável do réu.

A lógica, no plano isolado da lide em julgamento, é irrepreensível. Para o demandado, tendo em vista sua força econômica, a condenação representa impacto econômico ou patrimonial de pequena ou nenhuma relevância, facilmente absorvível; para o demandante, por outro lado, está em questão a própria sobrevivência e a de sua família. Não custa nada, em outros termos, condenar aquele empresário, o Estado ou o INSS a pagarem o relativamente pouco pleiteado pelo autor. Movidos, então, por sinceros valores de justiça, os juízes adotam a solução simplista: tiram do rico para dar ao pobre. Adotam postura que já foi qualificada alhures, em referência ao comportamento de jurados envolvidos com o julgamento de causas cíveis contra empresas nos Estados Unidos, como a de um moderno Robin Hood, impulsionada pela natural simpatia que desperta no espírito do julgador popular a causa do fraco em litígio contra o forte (Curso de Direito Civil, Saraiva, v.2. p. 284).

Para demonstrar quanto o Judiciário se encontra imbuído desta tendência, é importante ver as conclusões da pesquisa de Armando Castelar Pinheiro:

[A] tentativa de alguns magistrados de favorecer certos grupos sociais vistos como a parte mais fraca nas disputas levadas aos tribunais. Os próprios magistrados, com frequência, se referem a esse posicionamento como refletindo um papel de promotor da justiça social […]. Para examinar a relevância desse fator, perguntou-se aos juízes por qual das duas posições extremas eles optariam, se necessário: respeitar sempre os contratos, independentemente de suas repercussões sociais, ou tomar decisões que violem os contratos na busca da justiça social. Uma larga maioria dos entrevistados (73,1%) disse que optaria pela segunda alternativa (Pinheiro, A. C. (2005). Magistrados, Judiciário e Economia no Brasil. In: D. Zylberstajn, & R. Sztajn , Direito & Economia (p. 265). São Paulo: Elsevier).

No entanto, esse modo de julgar referido pelos autores supracitados leva a sérios problemas econômicos. Ainda na lição de Armando Castelar Pinheiro:

A não neutralidade do magistrado tem duas consequências negativas importantes do ponto de vista da Economia. Primeiro, os contratos de tornam mais incertos, pois podem ou não ser respeitados pelos magistrados, dependendo da forma com que ele encare a não neutralidade e a posição relativa das partes. Isso significa que as transações econômicas ficam mais arriscadas, já que não necessariamente “vale o escrito”, o que faz com que se introduzam prêmios de risco que reduzem os salários e aumentam juros, aluguéis e preços em geral. Segundo, […]  isso faz com que, nos casos em que essa não neutralidade é clara e sistemática, esses segmentos menos privilegiados sejam particularmente penalizados com prêmios de risco (isto é, preços) mais altos, ou então apenas alijados do mercado, pois a outra parte sabe que o dito e assinado na hora do contrato dificilmente será respeitado pelo magistrado, que buscará redefinir '”ex post” os termos da troca contratada. Isso significa que são exatamente as partes que o magistrado busca favorecer que se tornam as mais prejudicadas por essa não neutralidade (Pinheiro, A. C. (2005). Magistrados, Judiciário e Economia no Brasil. In: D. Zylberstajn, & R. Sztajn , Direito & Economia (p. 265). São Paulo: Elsevier).

Nessa mesma linha, apontando a mesma realidade no sistema norte-americano, a lição de John R. Lott Jr., sob o título Regulamentação pelos tribunais: boas intenções, maus resultados:

Faz parte da natureza humana querer que tais queixosos vençam seus casos – quem poderia querer ver uma corporação “gananciosa”, com advogados caros, sair vitoriosa diante de uma pobre mãe de família ou de um paciente gravemente doente? Mas ao permitir que seus corações, no lugar da lei, decidam tais casos, os juízes deixam de considerar as consequências  econômicas mais amplas de suas decisões. E certas tendências, ironicamente, muitas vezes são mais prejudiciais para os pobres, fracos e enfermos – em outras palavras, o tipo exato de pessoas que os juízes pretendem ajudar. Ao ajudar um indivíduo, os juízes inadvertidamente prejudicam um número muito maior de pessoas.

Considere um caso bem conhecido de Washington, D.C. Uma mãe inscrita em um programa de assistência social quis comprar um aparelho de som estéreo de US$ 514, a crédito, em uma loja que já tinha lhe vendido itens como uma cama, uma máquina de lavar roupa e quatro cadeiras para cozinha. A loja concordou em vender-lhe o som estéreo, mas solicitou-lhe que apresentasse uma garantia sobre suas compras anteriores — caso ela se mostrasse incapaz de pagar o estéreo, teria de devolver os objetos à loja. Quando a mãe não honrou seu pagamento, a empresa procurou os tribunais para fazer valer o seu contrato. O tribunal decidiu inicialmente em favor da empresa, mas, perante um recurso, a Corte de Apelações de D.C. declarou "abusivo" que "com pleno conhecimento de que a recorrente tinha de alimentar, vestir e sustentar tanto a si própria quanto a sete crianças [apenas com o recebimento de benefícios sociais], a apelada tenha lhe vendido um conjunto estéreo de US$ 514". Assim, o tribunal invalidou o contrato.

A decisão claramente favoreceu a mulher, permitindo-lhe que mantivesse seus objetos adquiridos anteriormente. E os juízes provavelmente sentiram-se bem depois de ter ajudado uma pobre mulher a vencer uma empresa mais rica e poderosa. Mas os juízes não parecem ter considerado o provável efeito de sua decisão sobre os outros clientes pobres da loja ou sobre as outras lojas que tomaram ciência do veredicto.

Porque a mãe estava inscrita em um programa de assistência social, a loja assumiu um grande risco ao vender-lhe um aparelho de som. Sem a apresentação da garantia, a loja provavelmente teria se recusado a oferecer-lhe crédito. Solicitar a devolução do aparelho em caso de insolvência não teria sido uma garantia suficiente para a loja, porque seria difícil e caro recuperar o aparelho, que poderia até mesmo voltar danificado. A reação mais sensata a este veredicto — especialmente para esta loja e para as demais — seria simplesmente interromper a oferta de crédito para as pessoas pobres. E as pessoas mais prejudicadas, neste caso, seriam, obviamente, os pobres; as pessoas pobres representam grandes riscos de crédito, mas também são frequentemente os clientes que mais necessitam dele. Nesse caso, o mercado criou um método — a caução — para ajudar os pobres a terem acesso aos bens mais caros, mas os tribunais efetivamente o eliminaram, a fim de ajudar uma única pessoa carente.

É bem verdade que essa tendência apontada pelos autores supracitados não é pacífica e parece não se mostrar verídica em alguns tribunais brasileiros. De fato, recente pesquisa dos economistas Luciana Luk-Tai Yueng e Paulo Furquim de Azevedo, publicada no jornal Valor Econômico (clique aqui), ao analisarem 1.687 recursos especiais referentes a dívidas privadas, julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) entre 1998 e 2008, mostraram que não houve evidência de viés pró-devedor. Ao contrário, a pesquisa demonstrou que os credores venceram a maioria das disputas analisadas. Embora a pesquisa atente apenas para um tribunal (STJ), sem se preocupar com outros ramos e esferas do Poder Judiciário, traz dados inovadores ao panorama anteriormente aludido.

De qualquer forma, há de se compreender bem: a atuação do Poder Judiciário no sentido de conferir equilíbrio entre as partes contratantes ou litigantes, economicamente distintas, é, sem dúvida, imprescindível e essencial. Porém, a exacerbação de tal postura, na forma relatada pelos autores mencionados, acaba por gerar um problema econômico, ao tornar, justamente aos menos favorecidos, mais caros os custos de aquisição de bens, contratação e transações em geral.

Portanto, em uma conclusão parcial do que se disse neste tópico, temos que nem sempre é verdadeira a afirmação de que o rigor e o excesso de regulação sobre o mercado, os empresários e os agentes econômicos em geral será necessariamente benéfica. Do mesmo modo, a aplicação viesada da regulação pode causar efeitos econômicos adversos àqueles a quem visa proteger.

À guisa de conclusão

Talvez o assunto seja muito complexo para que possamos concluir algo. Talvez nunca superemos o conflito ideológico entre os defensores de Estado ou mercado, capitalismo ou socialismo, ou mesmo entre capital e trabalho.

No entanto, cabe indagar: será que esses conflitos, tão marcados por defesas de ideologias, nos trouxeram mais benefícios que prejuízos ao longo do tempo? Será que Estado e mercado não poderiam dar-se as mãos, aprender e absorver, um com o outro, o que cada qual tem de melhor?

Décadas atrás, pessoas e grupos  travaram guerras e morreram por essas ideologias, muitas das quais são vistas hoje como vazias de sentido. Valeu a pena? Será que, ao invés de discutirmos ferozmente ideologias e nos digladiarmos por um ideal, não seria a hora de um aprofundamento em temas relevantes de forma mais objetiva, prática e fundamentada, independentemente do posicionamento ideológico?

Pode parecer um sonho, mas talvez um dia cheguemos lá.

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4 comentários:

  1. Parabéns pelo artigo!
    Natan - Brasília/DF

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  2. O dialogo e sempre o caminho. O problema aqui e ter como se encontrar o necessario equilibrio de forças entre os interlocutores para permitir uma discussao justa. Recomendo a leitura do livro "Os exuberantes anos noventa" de Joseph Stiglitz, nobel de economia, presidente do Conselho de Consultores Economicos do governo Clinton e economista-chefe do Bird.
    Fabio Camargo

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    1. Caro Fábio:

      Agradecemos pelo comentário e recomendação a todos leitores. Grande abraço!

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