Contabilidade para advogados: as reservas de capital

Contabilidade para advogados

Sabemos que o profissional da área jurídica, principalmente aquele que lida com questões empresariais, frequentemente se depara com problemas que envolvem assuntos contábeis, nem sempre encontrando material disponível que discorra de modo fácil e acessível sobre o tema, para proporcionar-lhe a devida solução.

Desse modo, sempre procurando atender às demandas de de nossos leitores, o blog direito empresarial abre uma nova categoria: os artigos da série contabilidade para advogados.

Neste post, que inaugura a série aludida, aproveitamos uma recente questão do exame da OAB n. 2010.3, 2ª fase (prova prático-profissional) , que exigiu conhecimento dos bacharéis a respeito das reservas de capital, explicando a natureza, a constituição e as finalidades do instituto. Saiba mais vendo o inteiro teor deste artigo de autoria do Prof. Alexandre Demetrius Pereira.

A questão formulada pela OAB

No exame da OAB n. 2010.3, 2ª fase (prova prático-profissional), o candidato se defrontou, dentre outras, com a seguinte questão:

A Companhia ABC foi constituída em 2010, sendo o seu capital social de R$ 150.000.000,00, representado por ações ordinárias e preferenciais, estas possuindo a vantagem de prioridade no recebimento de dividendo fixo e cumulativo equivalente ao montante que resultar aplicação de juros de 6% ao ano sobre o respectivo preço de emissão. Quando da emissão das ações, na ocasião de constituição da companhia, 20% do preço de emissão foram destinados ao capital social e 80% foram destinados à reserva de capital. Em face das suas elevadas despesas pré-operacionais, a companhia apresentou prejuízo em seu primeiro exercício (encerrado em 31/12/2010), o qual foi integralmente absorvido pela reserva de capital, que permaneceu com um saldo de aproximadamente R$ 500.000.000,00. Em relação ao cenário acima, responda aos itens a seguir, empregando os argumentos jurídicos apropriados e a fundamentação legal pertinente ao caso.

a) Tendo em vista o resultado do exercício encerrado em 31/12/2010, qual seria sua  orientação aos administradores da companhia para a elaboração da proposta da administração para Assembleia Geral Ordinária de 2011, no que diz respeito à distribuição de dividendos aos acionistas? (Valor: 0,5)

b) Nesse cenário, haveria possibilidade de distribuição de dividendos aos acionistas titulares de ações preferenciais? (Valor: 0,5)

Antes de iniciarmos o comentário, faz-se necessário esclarecer que nosso objetivo neste artigo é explicitar em maiores detalhes, sob o ponto de vista jurídico e contábil, o instituto da reserva de capital (embora, obviamente, sem esgotar o assunto). Dessa forma, conquanto nossos comentários também consubstanciem uma resposta à questão, nosso foco não é uma resolução direta e rápida, como se deveria esperar do candidato num exame de Ordem, até porque não haveria motivo para dar uma nova resposta à pergunta mencionada, quando a OAB já veiculou publicamente a o gabarito (clique aqui) há certo tempo.

Assim, inserimos neste artigo a questão supracitada como uma forma de chamar a atenção do leitor para os pontos de contato entre o Direito e a Contabilidade e como um interessante ponto de partida para explicarmos o instituto da reserva de capital, o que faremos a partir do tópico seguinte.

Breve introdução

Costuma-se dizer em contabilidade, de forma simplificada, que o patrimônio de uma entidade empresarial corresponde aos bens e direitos que ela titulariza (ativo) às dívidas e obrigações que possui (passivo) e finalmente à uma parcela que consagra a diferença (ou valor residual) entre as duas partes anteriormente referidas (ativo menos passivo ou patrimônio líquido).

Desse modo, a chamada equação fundamental da contabilidade preceitua que:

Equação fundamental da contabilidade

Para explicar melhor as reservas de capital, interessa-nos mais de perto o patrimônio líquido (PL). Como bem define a estrutura conceitual do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), embora o patrimônio líquido seja definido como um valor residual, ele pode ter subclassificações no balanço patrimonial. Usualmente, essa subclassificação divide o patrimônio líquido em:

  1. Capital: formado pelos valores decorrentes das contribuições dos sócios para a formação do patrimônio da entidade, em sua formação ou pelo aumento de capital, bem como por aqueles montantes posteriormente incorporados ao capital (p.ex.: capitalização de lucros e reservas);
  2. Lucros e prejuízos acumulados: conta que representa os valores retidos de lucros e prejuízos de  exercícios anteriores, conforme apurados em Demonstração do Resultado do Exercício (DRE) respectiva. Após a Lei n. 11.638/07, com relação às companhias, essa conta passou a consubstanciar somente os prejuízos acumulados, já que os lucros devem ter outra destinação;
  3. Reservas: podemos conceituar as reservas como retenções ou apropriações de valores no patrimônio líquido, destinadas a finalidades especiais;
  4. Outros resultados abrangentes: que na conceituação do Pronunciamento CPC n. 26 abrange toda e qualquer mutação que ocorre no patrimônio líquido durante um  período que resulta de transações e outros eventos que não derivados de transações com os sócios na sua qualidade de proprietários.

Basicamente, podemos dizer que as reservas se subdividem em três tipos: (1) de capital; (2) de reavaliação (hoje não mais existentes, segundo a maior parte da doutrina); (3) de lucros. Não trataremos aqui das reservas de reavaliação nem das reservas de lucros, em suas diversas subespécies, uma vez que neste artigo  interessa-nos mais de perto as reservas de capital, das quais passaremos a tratar a seguir.

O instituto da reserva de capital

Como bem conceituam Eliseu Martins et al.: [1]

As Reservas de Capital são constituídas de valores recebidos pela companhia e que não transitam pelo Resultado como receitas, por se referirem a valores destinados a reforço de seu capital, sem terem como contrapartidas qualquer esforço da empresa em termos de entrega de bens ou de prestação de serviços. Constam como tais reservas o ágio na emissão de ações, a alienação de partes beneficiárias e de bônus de subscrição. Essas são transações de capital com os sócios.

De acordo com o art. 182, §1º, da Lei 6.404/76:

§ 1º Serão classificadas como reservas de capital as contas que registrarem:

a) a contribuição do subscritor de ações que ultrapassar o valor nominal e a parte do preço de emissão das ações sem valor nominal que ultrapassar a importância destinada à formação do capital social, inclusive nos casos de conversão em ações de debêntures ou partes beneficiárias;

b) o produto da alienação de partes beneficiárias e bônus de subscrição.

O segundo tipo de reserva supracitada (alínea “b”) não é relevante para o caso concreto, nem tão comum na prática como o primeiro, consignando que serão contabilizadas como reservas as quantias obtidas pela companhia quando alienar partes beneficiárias e bônus de subscrição.

Cabe analisar com maior profundidade o primeiro tipo de reserva de capital, que diz respeito ao ágio na subscrição de ações. Afinal, o que vem a ser isso?

Para explicar com mais detalhes, voltemos aos dados da questão da OAB: a companhia ABC foi constituída com um capital de R$ 150.000.000,00. Embora a questão não precise com muita exatidão, parece indicar que o montante do capital corresponderia a 20% de todo o preço de emissão pago pelos sócios. Supondo efetivamente que os R$ 150.000.000,00, contabilizados como capital, correspondessem a 20% do preço de emissão e que o restante desse preço (80%) teria sido contabilizado como reserva de capital, teríamos que o PL da companhia ABC, ignorando outras contas, seria composto de:

Patrimônio Líquido (Cia. ABC)

Valores em R$

Percentual

Capital Social

150.000.000

20%

Reserva de Capital

600.000.000

80%

Total

750.000.000

100%

Resta claro que parte do preço de emissão pago pelos sócios (20%) foi contabilizado diretamente na conta de capital social. O restante (80%) foi contabilizado como reserva de capital.

Como saber, entretanto, que parte do preço de emissão das ações será contabilizada como capital e que parte irá para as reservas?

A resposta é simples e consta do art. 182, §1º, “a”, anteriormente citado. Veja no esquema gráfico seguinte:

Gráfico: capital e reservas

Vemos, portanto, que:

  1. Se as ações têm valor nominal (conceituando este como a divisão do capital pelo número de ações), a parte do preço de emissão que ultrapassar o valor nominal será considerada ágio na subscrição de ações e contabilizada como reserva de capital;
  2. Se as ações não têm valor nominal, caberá à companhia definir qual parte do preço de emissão será destinada à formação do capital. O que exceder esse montante será contabilizado como ágio em reserva de capital.

Como contabilizar?

Voltando aos dados do problema e nos termos do PL cujo montante foi estabelecido na tabela anteriormente transcrita, a Cia. ABC contabilizaria os valores antes mencionados da seguinte forma:

Contas

Débito

Crédito

Disponibilidades (caixa, bancos, etc.)

750.000.000

 

Capital Social

 

150.000.000

Reserva de Capital

 

600.000.000

Isso significa que a Cia. ABC teve o ingresso de R$ 750.000.000,00 em seu caixa ou em suas contas bancárias (supondo que a integralização foi em dinheiro). [2]  Parte desse valor (R$ 150.000.000,00) foi para o capital social e outra parte (R$ 600.000.000,00 de ágio) foi para a reserva de capital.

Verifique-se que a contabilização, como regra, segue o princípio das partidas dobradas, que, de forma simplificada, determina que se tenha igualdade nos lançamentos a título de crédito e débito.

O prejuízo e o pagamento de dividendos fixos

A questão ainda comenta que a Cia. ABC, dadas suas elevadas despesas pré-operacionais, teve um prejuízo no exercício, o qual foi absorvido integralmente pelas reservas, as quais ainda ficaram positivas em valor de aproximadamente R$ 500.000.000,00.

Presumindo os valores das receitas e despesas da Cia. ABC, de modo muito simplificado, teríamos o seguinte (valores entre parênteses representam números negativos):

Resultado e absorção pelas reservas - Cia. ABC

Valores (em R$)

Receitas

200.000.000

(-) Despesas

(300.000.000)

(=) Prejuízo do exercício

(100.000.000)

(+) Reserva de Capital (valor inicial)

600.000.000

(=) Reserva de Capital após prejuízo do exercício

500.000.000

Nessas condições, pode a administração da Cia. ABC pagar dividendos aos acionistas em geral? E em relação aos dividendos fixos (considerando tais dividendos como aqueles que, havendo lucro remanescente após sua distribuição, o acionista não participa da parcela restante), como deverá proceder a Cia. ABC?

Vejamos:

O art. 201 da Lei 6.404/76 ressalta que “A companhia somente pode pagar dividendos à conta de lucro líquido do exercício, de lucros acumulados e de reserva de lucros; e à conta de reserva de capital, no caso das ações preferenciais de que trata o § 5º do artigo 17”

Por seu turno, o mencionado § 5º do artigo 17 trata justamente das ações preferenciais com direito à distribuição de dividendo fixo.

Assim, temos que:

  1. Não houve lucro no exercício. Ao contrário, apurou-se prejuízo. Assim, não é possível distribuir dividendos aos acionistas em geral à conta de lucros do exercício;
  2. A  companhia não dispõe de algum montante em conta de lucros acumulados de  exercícios anteriores, pois cuida-se de atividade em seu primeiro exercício, que ainda se defronta com despesas pré-operacionais (anteriores ao início de sua atividade econômica principal). Desse modo, não se pode distribuir dividendos aos acionistas em geral com base em tal conta;
  3. A questão não fala em reserva de lucros. Não obstante, por se tratar de companhia em seu primeiro exercício e considerando que a reserva de lucros é uma retenção normalmente proveniente dos lucros do exercício ou de lucros acumulados (ambos ainda não existem), também é de se concluir pela impossibilidade de distribuir dividendos aos acionistas em geral com base em reserva de lucros.

Logo, os administradores da Cia. ABC deveriam propor à assembleia que não houvesse distribuição de lucros aos acionistas em geral. Isso responde o item “a” da questão da OAB referida no início do texto.

É de se lembrar que o art. 202, §4º, da Lei 6.404/76 ressalta que o dividendo obrigatório perderá tal caráter de obrigatoriedade “no exercício social em que os órgãos da administração informarem à assembleia-geral ordinária ser ele incompatível com a situação financeira da companhia”.

Resta somente a situação dos acionistas preferenciais com direito a dividendos fixos, os quais poderão ser agraciados com tal pagamento, pois será feito à custa das reservas de capital, as quais ainda restam positivas. Isso responde o item “b” da questão da OAB referida no início do texto.

Conclusões

A Contabilidade e o Direito estão cada vez mais interligados. Diante disso, o profissional da área jurídica deverá estar cada vez mais informado sobre questões contábeis (possuindo ao menos boas noções dos institutos desta ciência) para bem assessorar seu constituinte ou para lidar, de forma geral, com os problemas frequentes da área empresarial.

Sem ingressar em qualquer polêmica sobre os exames da OAB (que sempre têm seus admiradores e desafetos), entendemos que a questão cobrada, inserida neste  artigo para bem demonstrar a interdependência de conhecimentos jurídicos e contábeis, merece nossos elogios, por exigir do advogado empresarial conhecimento abrangente para atuar na área.


[1] Manual de Contabilidade Societária. São Paulo: Atlas, 2010. p. 349.

[2] É importante definir que um aumento nas contas de ativo (p.ex.: caixa, disponibilidades, créditos a receber, etc.) corresponde a um lançamento a débito, por força de convenção contábil. É muito comum que o profissional da área jurídica estranhe essa convenção, pois usualmente ligamos aumento de direitos patrimoniais com crédito (e não com débito). Não é o caso de aprofundar essa questão neste texto, pois isso exigiria maiores fundamentos de teoria da contabilidade. Se você é da área jurídica, apenas entenda que isso é uma convenção: contas de ativo aumentam a débito e diminuem a crédito.

Share:

9 comentários:

  1. Muito bom o artigo. Trabalho com direito societário, e tenho estudado contabilidade para melhor entender as questões limitrofes entre o direito e a ceara contábil. Vejo um futuro promissor para este blog, o qual frequentarei periodicamente. Obrigado pelas lições.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Caro Fernando:

      Obrigado pelos elogios ao blog e por passar a ser nosso leitor assíduo. Fico feliz em saber que ajudamos nossos leitores.

      Grande abraço!

      Excluir
  2. Karina Mesquita vieira23 de fevereiro de 2012 às 11:32

    Impecável explicação!
    Parabéns!

    ResponderExcluir
  3. Muito boa a explicação.

    ResponderExcluir
  4. A presente explicação foi de grande valia para complementar e enriquecer minha pesquisa a respeito de Reserva de Capital.

    Obrigada!

    ResponderExcluir
  5. Túlio Lacerda Gontijo4 de setembro de 2013 às 15:42

    Alexandre,

    O texto está excelente, tando do ponto de vista didático quanto técnico.

    Parabéns!

    ResponderExcluir
  6. Prezado dr. Alexandre,

    Gostaria de também registrar meu elogio ao texto. Lamentavelmente, as faculdades de Direito pararam de valorizar a interdisciplinaridade, especialmente com a Contabilidade, o que muito prejudica os advogados em sua lide diária.

    Parabéns!

    ResponderExcluir