A convergência de ramos do Direito: Direito Comercial e Penal

Sob um aspecto, entre tantos outros, o estudo do direito a partir de disciplinas especializadas é um recurso didático que objetiva facilitar o estudo de um campo de conhecimentos extremamente vasto e complexo. É claro que os diversos ramos do direito são construídos a partir de fundamentos próprios que, precisamente, os identificam e separam uns em relação aos outros. Mas a complexidade da vida em sociedade, tanto no plano pessoal como empresarial mostra muitas vezes a intersecção inafastável de ramos jurídicos distintos, que se complementam no objetivo geral de garantir segurança e certeza nas relações sociais, bem como a garantia da realização da justiça. É o que pretendemos mostrar sem maiores pretensões. por meio da análise de uma decisão muito recente da 5ª turma do STJ.

No caso, aquele tribunal condenou ex-administrador de uma instituição financeira à pena de nove anos e dois meses de reclusão pela prática do crime previsto no art. 7º, III da chamada “Lei dos Crimes Financeiros” (Lei 7.492/1986), ou seja, pela emissão de títulos sem lastro

Art. 7º Emitir, oferecer ou negociar, de qualquer modo, títulos ou valores mobiliários:

I - falsos ou falsificados;

II - sem registro prévio de emissão junto à autoridade competente, em condições divergentes das constantes do registro ou irregularmente registrados;

III - sem lastro ou garantia suficientes, nos termos da legislação;

IV - sem autorização prévia da autoridade competente, quando legalmente exigida:

Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa”.

Na defesa do mercado de títulos, a lei mencionada criminalizou certas práticas danosas aos investidores, entre as quais a que se refere ao caso sob exame.

Veja-se, conforme disposto na sentença, que não é na lei penal de se encontra o conceito do que seja um título sem lastro, ou sem garantia suficiente. Estes conceitos são dados pelo direito comercial bancário, no caso.

Por exemplo, quando um empresário faz uma venda mercantil, ele pode se valer do saque de uma duplicata, a ser aceita pelo comprador. Desta forma, o vendedor, em se tratando de negócio a prazo, tem a faculdade de descontar a duplicata em um banco, antecipando o recebimento do valor correspondente, a fim levantar recursos para poder repor o seu estoque, não precisando aguardar o vencimento do título.

No exemplo dado, o lastro da duplicata é, precisamente, a venda mercantil que foi feita, e a garantia indireta é dada pelo bem alienado ao comprador, que poderá ser retomado caso este se torne inadimplente.

A prática condenada pelo STJ, no caso, caracteriza a quebra de outro dispositivo da Lei 7.492/1986, como seja, aquele que se refere à gestão fraudulenta de uma instituição financeira.

Art. 4º Gerir fraudulentamente instituição financeira:

Pena - Reclusão, de 3 (três) a 12 (doze) anos, e multa.

Parágrafo único. Se a gestão é temerária:

Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.

Mais uma vez aqui é o direito comercial que informa o tipo penal, por via negativa. Isto significa partir do conceito de gestão regular, aquela realizada pelo administrador como forma da realização do objeto social da sociedade que administra, para caracterizar uma quebra dos deveres correspondentes, que pode se dar tanto pela assunção de riscos anormais (gestão temerária), como pela prática de atos ilegais enganosos no mercado (gestão fraudulenta).

Objeto social, bem como deveres e responsabilidades dos administradores, são institutos da lei societária, cujos conceitos foram apropriados pelo direito penal no julgamento em questão.

Compreenda-se, desta forma, a unidade do direito, e a necessidade de que quem nela opera tenha uma visão abrangente, não quebrada pela ideia de ilhas que não se comunicam.

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