Para entender o “insider trading”

Nesta última semana,  a  imprensa veio a noticiar a publicação de decisão judicial inédita, relativa ao primeiro caso de aplicação do art. 27-D da Lei 6.385/76, que traz a tipificação penal do uso de informações privilegiadas por administradores de companhias, prática também chamada de insider trading.

Para que nossos leitores possam entender melhor em que consiste o instituto do insider trading, conduta definida na categoria de crime contra o mercado de capitais desde a sobrevinda da Lei 10.303/01, trazemos nesta postagem uma explicação simples e didática sobre o tema.

Considerações iniciais

Informamos, inicialmente, que por padrões éticos seguidos rigorosamente no blog direito empresarial,  limitamos o teor de nosso artigo às considerações teóricas de caráter puramente doutrinário, visando apenas ao esclarecimento ou explicação do instituto do insider.

Não haverá aqui, portanto, qualquer comentário ou referência que possa identificar as partes de processo judicial em trâmite, ou alguma expressão de aprovação ou reprovação de comportamentos tomados em casos concretos. Não veicularemos, igualmente, juízos de valor sobre o teor de sentenças ou a respeito da conduta concreta das partes e dos órgãos judicantes.

A essência do insider e suas consequências

Já ressaltava o clássico trabalho de Berle e Means que, na sociedade anônima, separam-se usualmente os atributos da propriedade das ações e do controle da administração.

De fato, o acionista de uma sociedade anônima (principalmente quando se trata de um minoritário), embora seja titular (ou “proprietário”, para usar o temo dos autores mencionados) do capital que constitui a companhia, frequentemente não toma parte na administração do negócio, nem está interessado em fazê-lo, dado que não dispõe de tempo hábil ou capacidade técnica para tanto.

Assim, o detentor da propriedade das ações (acionista), usualmente não é quem controla os destinos da sociedade, uma vez que a administração é conferida a outra categoria de pessoas, qual seja, os administradores (em nosso ordenamento, os diretores e os membros do Conselho de Administração, quando existente, fazem parte da administração da companhia).

Como ressaltam Berle e Means, com o surgimento das companhias:

Criou-se uma grande massa de acionistas que não exercem virtualmente nenhum controle sobre a riqueza com que eles ou seus predecessores contribuíram para a empresa (BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner C. A moderna sociedade anônima e a propriedade privada. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 35).

Desse fenômeno não é difícil deduzir que, pelo exercício da gestão do negócio, os administradores usufruam frequentemente de uma maior quantidade de informações que os acionistas que não participam da condução da companhia.

Também não é difícil deduzir que os administradores possam usar intencionalmente essa superioridade de informações para manipular os preços de valores mobiliários da sociedade (ações, debêntures, etc.) em benefício próprio ou de terceiros, ou meramente para se antecipar na assunção de posições de mercado (p.ex., comprando e vendendo valores mobiliários) ao terem prévia ciência de negócios que irão influenciar o preço desses ativos.

Para melhor esclarecer, vejamos o exemplo dado por Verçosa:

Suponha-se que, em viagem ao exterior, o diretor de vendas de uma companhia aberta tenha fechado um grande negócio relativamente ao fornecimento do produto de sua empresa para um comprador importante pelo prazo de 10 anos, a um preço bastante interessante para sua empresa. Evidentemente, assim que essa informação chegar ao conhecimento do mercado, o preço das ações em Bolsa deverá subir em favor dos acionistas atuais. Ora, antes mesmo de fazer a informação chegar à própria companhia, o administrador em causa pode dar instruções a um amigo ou parente para comprar uma quantidade significativa dos valores mobiliários da sua companhia, vindo a vendê-los com grande lucro depois que a informação vier a ser divulgada e a cotação daqueles papéis tiver subido (VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc; PEREIRA, Alexandre Demetrius. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Malheiros, 2008. v. 3, p. 463).

Fica claro que essa conduta dos administradores causa uma série de percalços, dentre os quais:

  1. Aos acionistas e à própria companhia, em virtude de que, ao não serem comunicados previamente a respeito da informação relevante conhecida pelo administrador, não desfrutaram da mesma gama de oportunidades comerciais do praticante do insider, como poderiam fazê-lo caso fossem previamente avisados. Ressalte-se que as informações detidas pelo administrador, em princípio, pertencem à companhia e aos acionistas, os quais, em última análise, devem decidir sobre as oportunidades de negócio surgidas para esta. Em outras palavras, o administrador que pratica o insider acaba por desviar para si recursos que originariamente pertenceriam à companhia, causando a esta, ainda que indiretamente, um prejuízo; 
  2. Ao mercado em si, pela quebra da lisura e da confiança nas regras e no dever de lealdade que comandam as transações;
  3. Aos investidores e demais participantes do mercado, que, atundo em condições desvantajosas de acesso à informação, acabam por ser privados de uma possibilidade de lucrativa de negócio lícito, além de restar obrigados a pagar maior preço pelo valor mobiliário, sem poder aproveitar das mesmas oportunidades do gestor. Por isso é que se diz que o praticante do insider subtrai lucros do investidor ou acionista desinformado (stole profits from uninformed shareholder).

Pesquisas econômicas internacionais destacam que a prática do insider é extremamente danosa aos mercados de capitais. Trabalho feito por Hazem Daouk e Utpal Bhattacharya (“The World Price of Insider Trading”, Journal of Finance, 2002), citado na obra de Beaty e Samuelson, ressalta que:

Pesquisas recentes confirmam a visão segundo a qual o insider trading prejudica os mercados de valores mobiliários. Comparando retornos em todos os 103 mercados de ações mundiais, os dois economistas concluíram que os mercados nos países em que ocorre um reforço protetivo da legislação contra a prática do insider trading tiveram ganhos cinco por cento superiores aos de mercados de países com nenhuma lei ou com legislação que continha punições brandas. Cinco por cento dos montantes de capitalização dos mercados de ações de todo o mundo resultam em US$ 1,75 trilhões (BEATTY, Jeffrey F.; SAMUELSON, Susan S. Business Law and the legal environment. Ohio: South-Western Cengage Learning, 2010, p. 906, tradução livre do autor).

Diante dessas razões, a prática do insider trading é condenada na grande maioria dos mercados de capitais em todo o mundo. Desse modo, trazemos a seguir algumas referências à proteção contra a prática de insider trading na legislação italiana e norte-americana.

O insider trading no Direito Comparado

Na Itália, o Decreto legislativo n. 58, de 24 de fevereiro de 1998 pune, em seu art. 180 e seguintes, o abuso di informazioni privilegiate e manipolazione del mercato, considerando informação privilegiada no art. 181:

[…] un'informazione di carattere preciso, che non è stata resa pubblica, concernente, direttamente o indirettamente, uno o più emittenti strumenti finanziari o uno o più strumenti finanziari, che, se resa pubblica, potrebbe influire in modo sensibile sui prezzi  di tali strumenti finanziari.

Também na Itália, o mesmo diploma legal, em seu art. 184, prevê a cominação de sanções penais que variam de um a seis anos de reclusão e multa ao praticante do insider:

1. È punito con la reclusione da uno a sei anni e con la multa da euro ventimila a euro tre milioni chiunque, essendo n possesso di informazioni privilegiate in ragione della sua qualità di membro di organi di amministrazione, direzione o controllo dell'emittente, della partecipazione al capitale dell'emittente, ovvero dell'esercizio di un'attività lavorativa, di una rofessione o di una funzione, anche pubblica, o di un ufficio: a) acquista, vende o compie altre operazioni, direttamente o indirettamente, per conto proprio o per conto di terzi, su strumenti finanziari utilizzando le informazioni medesime; b) comunica tali informazioni ad altri, al di fuori del normale esercizio del lavoro, della professione, della funzione o dell'ufficio; c) raccomanda o induce altri, sulla base di esse, al compimento di taluna delle operazioni indicate nella lettera a).
2. La stessa pena di cui al comma 1 si applica a chiunque essendo in possesso di informazioni privilegiate a motivo della preparazione o esecuzione di attività delittuose compie taluna delle azioni di cui al medesimo comma 1.
3. Il giudice può aumentare la multa fino al triplo o fino al maggiore importo di dieci volte il prodotto o il profitto conseguito dal reato quando, per la rilevante offensività del fatto, per le qualità personali del colpevole o per l'entità del prodotto o del profitto conseguito dal reato, essa appare inadeguata anche se applicata nel massimo.

Nos Estados Unidos, a prática do insider trading vem regulada em diversas disposições legais, dentre elas no Securities Exchange Act, de 1934, que submete seus infratores a penas de multa (até US$ 5.000.000,00) e prisão de até 20 (vinte) anos.

O insider trading na legislação brasileira

No Brasil, o insider trading  é punido em três esferas: civil, administrativa e penal.

A definição (e vedação) da prática de insider trading consta do art. 155, §1º, da Lei 6.404/76, verbis:

Art. 155. O administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios, sendo-lhe vedado:

(…)

§ 1º Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários.

Na esfera civil, a prática de insider gera a responsabilização do administrador pela recomposição dos prejuízos causados à companhia, acionista ou investidor prejudicados, estando qualquer deles legitimado a ingressar em juízo pleiteando a reparação dos danos. Normalmente, como ressaltado no Parecer CVM/SJU n. 45/84 “O prejuízo da comunidade investidora – qualquer que seja seu volume – é a contrapartida do lucro obtido pelo insider, em negociação realizada em período anterior ao da divulgação da informação privilegiada”.

No âmbito administrativo, a prática do insider pode levar a punições, como a imposição de multa pela CVM. Nesse sentido, vale transcrever ACÓRDÃO/CRSFN 7472/06, oriundo do Processo CVM 33/00, assim ementado:

EMENTA: RECURSOS VOLUNTÁRIOS – Mercado de valores mobiliários – Negociação de ações em bolsa de valores – Uso de informação relevante ainda não divulgada ao mercado (transferência de controle acionário de companhia) - insider trading – Quebra dos deveres de administrador de carteira – Irregularidades confirmadas – Irrelevância econômica das operações como fator de abrandamento da pena – Apelos providos parcialmente.

PENALIDADE: Multa Pecuniária.

BASE LEGAL: Lei nº 6.385/76, art. 11, inciso II.

Também no Poder Judiciário já se confirmou a imposição de penalidade administrativa para a prática de insider. Nesse sentido foi o julgamento da apelação cível  AC 9102131820 no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Rel. Desembargador Federal CLELIO ERTHAL:

Ementa

ADMINISTRATIVO E COMERCIAL. INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA. ART. 155, PARAG. 1º. DA LEI N. 6.404/76. INSIDER TRADING. - TENDO A PARTE DESISTIDO DAS TESTEMUNHAS, NÃO PODE ALEGAR CERCEAMENTO DE DEFESA. - COMPROVADO QUE O ADMINISTRADOR DA EMPRESA UTILIZOU INFORMAÇÃO RELEVANTE, OBTIDA EM RAZÃO DO CARGO, PARA LOGRAR VANTAGEM NA AQUISIÇÃO E VENDA DE AÇÕES DA PRÓPRIA EMPRESA, CARACTERIZA-SE A FIGURA DO INSIDER TRADING, COM VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 155, PARAG. 1º DA LEI N. 6.404/76. - RECURSO NÃO PROVIDO.

No campo penal, nossa legislação foi mais tardia. Com efeito, a prática do insider trading somente foi considerada crime a partir do advento da Lei 10.303/01, que criou a figura típica constante do art. 27-D da Lei 6.385/76, verbis:

Art. 27-D. Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários: Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime. (Artigo incluído pela Lei nº 10.303, de 31.10.2001)

Embora a criminalização da conduta em estudo possa indicar, numa primeira análise, um método eficaz de dissuasão e prevenção do uso de informações privilegiadas, devemos dizer que a proteção penal ao insider, como sói acontecer no Brasil, é extremamente branda.

De fato, ao contrário do que possa parecer, na prática, a pena mínima cominada ao delito (um ano de reclusão), aliada à primariedade da maioria dos acusados que possivelmente venham a ser submetidos a um processo criminal cujo objeto seja a prática de insider, permitirá, logo de início, a aplicação do instituto da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95), o que excluirá de plano a incidência das sanções penais no caso concreto.

Ainda que não seja aplicável a suspensão do processo ao caso concreto, dificilmente um praticante de insider trading sofrerá a incidência de pena privativa de liberdade, uma vez que raramente sua pena ultrapassará quatro anos de reclusão no caso concreto, obrigando o magistrado, nos termos do art. 44 do Código Penal, a substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direito.

Tudo isso aliado a outras falhas de nossa legislação penal e à dificuldade ordinariamente encontrada para a prova dos atos que constituam o insider não nos permitem fazer bom prognóstico da prevenção dessa conduta por meio da tipificação penal.

Estudos de Análise Econômica do Direito (Law and Economics), ressaltam que há casos (como os dá prática de insider) em que a mera indenização ou internalização de custos não é suficiente. Isso ocorre principalmente: 1) quando o patrimônio da vítima não possa ser perfeitamente compensado pela ação danosa; 2) quando haja necessidade de que o ato ou a atividade não sejam praticados ou sejam impedidos (deterrence), ao invés da mera imposição de indenização a posteriori em relação à conduta praticada.

Para essas hipóteses, a legislação de responsabilidade civil não basta, uma vez que a mera obrigação de indenizar não será suficiente, seja para repor o patrimônio violado, seja para impedir a prática do ato que se busca evitar.

Portanto, quando o objetivo da legislação é deter a prática de um determinado ato (e não provocar sua compensação econômica posterior) a imposição de responsabilidade civil é claramente insuficiente para tanto, necessitando que o Estado a suplemente por meio da punição criminal da conduta. Clara é, nesse sentido, a lição de COOTER e ULEN:

Por várias razões, entretanto, os processos civis não podem minimizar o custo dos crimes. Nós explicaremos essas razões para justificar a existência da lei penal. A primeira razão concerne a algumas limitações inerentes à compensação (...). A compensação perfeita internaliza o dano causado pelo ofensor (...), entretanto, a perfeita compensação é impossível para a maioria das pessoas que perdem uma perna ou um filho. Nesses casos, os tribunais arbitram reparações para impedir riscos desarrazoados, não para compensar um dano (...).

De modo similar, a punição criminal busca deter danos intencionais, não compensá-los. Imagine um experimento em relação a um crime. Quanto dinheiro seria necessário para que se permitisse que alguém assaltasse uma vítima munido de um martelo? Essa questão não faz sentido. O conceito de indiferença é difícil de se aplicar a crimes como um assalto. Consequentemente, a legislação não consegue atingir seu objetivo através da perfeita compensação das vítimas e internalização dos custos pelos ofensores. Ao invés de precificar os crimes, o objetivo da punição é detê-los. O Estado proíbe as pessoas de intencionalmente causarem danos a outras por meio da punição. Assim, a lei criminal é um necessário suplemento da legislação de responsabilidade civil quando a compensação é impossível.

Há uma terceira razão para suplementar a responsabilidade civil com a punição criminal em algumas circunstâncias: a punição é necessária para impedir o ato (...) Em geral, roubadores não podem ser impedidos pela obrigação de que devolvam o que tenham subtraído toda vez em que forem pegos. Com o fim de impedir os roubos, a lei precisa impor punição suficiente para que o benefício líquido do crime seja negativo (COOTER, Robert; ULLEN, Thomas. Law and Economics. Nova Iorque: Addison Wesley Longman, 2000, p. 433-434).

Dessa forma, o efeito de dissuasão e prevenção da lei penal pátria em relação ao insider trading dificilmente será efetivo para deter esse tipo de conduta, do modo que foi tipificado.

Em conclusão

O uso de informações privilegiadas decorre da clássica separação entre propriedade e controle em sociedades anônimas. Essa prática causa inúmeros prejuízos ao mercado e é punida na maior parte dos ordenamentos jurídicos estrangeiros. No Brasil, o insider é punido no campo civil, administrativo e criminal. Neste último âmbito, porém, a legislação penal brasileira, a nosso ver, merece críticas, por ser claramente insuficiente a dissuadir e prevenir a conduta penalmente tipificada.

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4 comentários:

  1. ADOREI o artigo!
    Claro, COMPLETO e objetivo.
    Já tinha algum contato com informações a respeito de "insider", mas nunca havia tido uma visão tão abrangente.
    Parabéns pelo Blog.

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  2. Assunto bastante interessante e difícil de ser encontrado em livros com tamanha clareza e precisão. Parabéns. Denise Bueno

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  3. Parabens, tema interesante e bem colocado.

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  4. Caros amigos:

    Agradeço pelos carinhosos comentários. Lembramos novamente que a satisfação de nossos leitores é nossa maior alegria.

    Grande abraço.

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