Crimes falimentares: competência para julgamento e jurisprudência do STJ

A Lei 11.101/05 dispõe, em seu art. 183, que compete ao juiz criminal da jurisdição onde tenha sido decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou homologado o plano de recuperação extrajudicial, conhecer da ação penal pelos crimes nela previstos.

No entanto, em alguns Estados, como São Paulo, a legislação estadual de organização judiciária (anterior à Lei 11.101/05) atribuiu esta competência ao juízo da falência.

Diante do problema, muitos doutrinadores defenderam a competência do juízo criminal, argumentando que o juiz falimentar não possuía, muitas vezes, a necessária isenção para julgar os crimes falimentares, uma vez que usualmente tal magistrado já teria sua convicção previamente formada pelo anterior conhecimento dos atos do falido e pela efetivação de outras medidas jurisdicionais contra os interesses deste último. Outra parte da doutrina, em linha oposta, defendeu que a Lei 11.101/05 seria inconstitucional ao apontar o juízo criminal como competente, por dispor de matéria de competência estadual, tema que seria reservado à legislação estadual.

Para complicar um pouco mais todo esse imbróglio, ainda temos que verificar os casos em que: 1) há conexão ou continência de crime comum e crime falimentar; e 2) a conexão ou continência aludidas, inicialmente existentes, cessam no curso do processo criminal em virtude, por exemplo, da extinção da punibilidade do delito falencial.

A competência polêmica com o advento da Lei 11.101/05

Como se sabe, a competência para o processo e julgamento dos processos criminais falimentares é da Justiça Comum Estadual. [1]

Já na vigência do Dec. Lei 7.661/45, havia disposição específica no art. 109, §2º, deste regramento, no sentido de que o juízo criminal seria o competente para julgamento de eventual processo por crime falimentar.

Estabelecia referida norma que, recebendo a denúncia ou queixa, o juiz falimentar, em despacho fundamentado, determinaria a remessa imediata dos autos ao juízo criminal competente para prosseguimento da ação nos termos da lei processual penal.

Essa regra, entretanto, não impediu que a legislação estadual e as disposições internas dos Tribunais de Justiça dos Estados determinassem que a competência para processo e julgamento dos delitos falimentares permaneceria com o juiz da falência, como foi o caso do Estado de São Paulo (Lei Estadual n. 3.947/83) e do Distrito Federal (Lei 8.185/91). Sob a vigência do diploma falimentar anterior, a constitucionalidade das normas estaduais que estabeleciam a competência do juízo da falência foi reconhecida, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal (RHC n.: 63787. J. 27/08/1986).

Já a Lei 11.101/05 determina que:

Art. 183. Compete ao juiz criminal da jurisdição onde tenha sido decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou homologado o plano de recuperação extrajudicial, conhecer da ação penal pelos crimes previstos nesta Lei.

Verifica-se, portanto, que ambos os diplomas legais determinavam a competência do juízo criminal para processo e julgamento dos crimes falimentares, com a única diferença de que o art. 109, §2º, do Dec. Lei 7.661/45 estipulava que a competência do juízo criminal se iniciava após o recebimento da denúncia pelo juízo falimentar, enquanto o art. 183 da Lei 11.101/05 estabelece a competência do juízo criminal desde o início da persecução penal em juízo.

Nesse ponto se inicia a polêmica sobre a competência para julgamento dos crimes falimentares.

A postura efetivamente tomada pelos elaboradores do Projeto de Lei que deu origem à Lei 11.101/05, embora objeto de certa controvérsia, foi claramente a de excluir a competência do juízo falimentar para julgar os crimes falimentares. Pode-se verificar essa linha na argumentação do Senador RAMEZ TEBET no parecer ao PLC 71/2003:

Ao contrário da visão acolhida no PLC nº 71, de 2003, julgamos excessiva a acumulação, por parte do juiz da falência, das funções de persecução criminal. Na verdade, nas comarcas que possuem varas criminais especializadas, é desejável que estas assumam plenamente o processo penal. É que os objetivos da ação penal e da ação de falência são muito distintos. No primeiro caso, o órgão julgador está preocupado em verificar a consistência da acusação, avaliar provas, fazer observar as garantias constitucionais e, se for o caso, condenar. Nos processos de recuperação judicial ou de falência, o juiz, o quanto possível, deve envidar esforços para o soerguimento da empresa e satisfação dos credores habilitados. São lógicas distintas e que, não raro, podem entrar em rota de colisão. Ademais, o comportamento do falido como devedor no processo de falência pode afetar a sua condição de réu, o que favorece toda sorte de prejulgamentos.

Na mesma linha o argumento de ANTÔNIO SÉRGIO A. DE MORAES PITOMBO:

O devido processo penal impunha que as ações penais fossem julgadas por magistrado com neutralidade e independência, o qual não estivesse em contato com o processo falimentar ou de recuperação. No caso da lei atual, esse aspecto se acentua, na medida em que várias infrações penais se destinam à tutela do próprio processo falimentar, protegendo a administração da Justiça. Seria um absurdo deixar que o acusado de prestar informações falsas no processo de falência, com o fim de induzir a erro o juiz (art. 171 da Lei 11.101/2005), viesse a ser julgado pelo mesmo juiz que se sentiu enganado. (Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005. Coordenação: Francisco Satiro de Souza Júnior, Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005).

Outra parte da doutrina, tendo como representante o Prof. FÁBIO ULHOA COELHO, defendeu a competência do juízo estabelecido pela legislação estadual de organização judiciária, ante a inconstitucionalidade da Lei 11.101/05:

Essa norma, na verdade, é inconstitucional. Cabe a lei estadual de organização judiciária definir a competência para a ação penal por crimes falimentares. Na distribuição de competência que a Constituição estabelece, não é da União, mas sim dos Estados, a de estruturar os serviços judiciários, definindo que órgãos serão criados e com qual competência jurisdicional (COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e Recuperação de empresas. São Paulo: Saraiva, 2005).

Em São Paulo, a polêmica recebeu normatização com a  Resolução nº 200/2005 do TJSP, de 31.03.2005, em que se manteve a competência das Varas de Falência e Recuperações para processar, julgar e executar os feitos relativos à falência, recuperação judicial e extrajudicial, principais, acessórios e seus incidentes, disciplinados pela Lei Federal nº 11.101/05, incluídas as ações penais (artigo 15 da Lei Estadual nº 3.947/83).

Não obstante a razoável pacificação na regulamentação e jurisprudência estaduais, o tema ainda não tinha, até algum tempo, sido objeto de decisão no Superior Tribunal de Justiça, como veremos na parte final deste artigo.

 

Os casos de conexão ou continência

Muitas vezes, reúnem-se pela conexão ou continência crimes comuns e falimentares, originalmente afetos a juízos distintos. Nesse ponto, há certo consenso na doutrina e na jurisprudência de que caberá o julgamento do crime comum ao juiz competente para julgar o crime falimentar, estendendo-se a competência deste último.

O problema ocorre, muitas vezes, pelo desfazimento da  conexão ou continência no curso do processo criminal. Em certos casos, por exemplo, o juiz competente para o julgamento do crime falimentar declara a prescrição da pretensão punitiva em relação ao delito falencial, subsistindo o feito em relação ao delito comum.

Como fica a competência nesse caso?

Muitos juízes de primeira instância, na hipótese mencionada, insistem em remeter o feito ao juízo competente para o julgamento do crime comum, mesmo diante da disposição do art. 81 do CPP, consagrando o princípio da perpetuatio jurisdictionis, segundo o qual, verificada a reunião dos processos por conexão ou continência, ainda que no processo da sua competência própria venha o juiz ou tribunal a proferir sentença absolutória ou que desclassifique a infração para outra que não se inclua na sua competência, continuará competente em relação aos demais processos.

Tais decisões, inclusive, lastreavam-se em precedentes do TJSP, um dos quais é a seguir citado:

COMPETÊNCIA - Conexão - Crime comum autônomo, cometido com fraude, e crime falimentar - Extinção da punibilidade deste, em razão da prescrição - Efeito que não se estende ao crime conexo - Cassação, ademais, da causa determinante da competência do Juízo Cível, em relação a este delito - Desapensamento dos autos, para remessa ao Juízo Criminal de origem - Ordem denegada JTJ 124/433.

Essa linha jurisprudencial parece não ser acolhida pelo STJ, como veremos em tópico posterior deste artigo.

O posicionamento da jurisprudência do STJ diante de toda a polêmica

O STJ, mais recentemente, assumiu algumas posições em sua jurisprudência a respeito do tema.

Sobre a divergência entre a competência do juízo falimentar (nos Estados em que a legislação local assim determine) e o juízo criminal, o STJ, no HC 106406/SP (Rel. Min. FELIX FISCHER, j. 16/06/2009) decidiu prestigiar a legislação local de organização judiciária, admitindo, na esteira do julgamento do STF que considerara constitucional a Lei n. 3.947/83, que o juízo falimentar seja apontado como competente para o julgamento do crime falimentar.

Veja-se a ementa do acórdão seguinte (g.n.):

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA E CRIME FALIMENTAR (ART. 186, VI, DO DEC.-LEI 7.661/45 - ANTIGA LEI DE FALÊNCIAS). ATIPICIDADE DO CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA SUPERVENIENTE. PEDIDO PREJUDICADO. ALEGAÇÃO DE PRESCRIÇÃO DO DELITO FALIMENTAR. INOCORRÊNCIA. VEDAÇÃO À COMBINAÇÃO DE LEIS. NULIDADE. APONTADA INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO UNIVERSAL DE FALÊNCIAS. INOCORRÊNCIA. EXISTÊNCIA DE LEI ESTADUAL. MATÉRIA TÍPICA DE ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. FUNDAMENTAÇÃO. JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE DEVIDAMENTE FUNDAMENTADO. PRESCINDIBILIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO. LEI 11.101/05 (ATUAL LEI DE FALÊNCIAS).

I - Tendo em vista a superveniência de sentença absolutória quanto ao crime de apropriação indébita, resta prejudicado o writ, quanto à alegação de atipicidade da conduta.

II - Em se tratando de normas vinculadas, não se admite a combinação de leis para se alcançar uma terceira, não prevista pelo legislador (Precedentes).

III - In casu, pretendia-se a combinação dos dispositivos mais favoráveis do Dec-Lei 7.661/45 (antiga Lei de Falências) com os da Lei 11.101/05 (atual Lei de Falências), relativos à prescrição nos delitos falimentares, valendo-se do termo a quo da novel legislação conjugado com os prazos do diploma revogado.

IV - Especificamente no Estado de São de Paulo, a Lei Estadual nº 3.947/83, em seu art. 15, determina que as ações por crime falimentar e as que lhe sejam conexas são da competência do respectivo Juízo Universal da Falência, tendo sido tal diploma legislativo declarado constitucional pelo c. Supremo Tribunal Federal, por se tratar de norma típica de organização judiciária, inserida, portanto, no âmbito da competência legislativa privativa dos Estados, a teor do art. 125, § 1º, da Lex Fundamentalis.

V - Na espécie, o despacho que recebeu a denúncia e compõe o juízo de admissibilidade da ação penal encontra-se suficientemente fundamentado, porquanto além de verificar quantum satis a adequação típica das condutas, se funda em relatório da Síndica da falência, no qual são apontadas as irregularidades que configurariam, em tese, os delitos imputados. Ademais, à época do recebimento da proemial acusatória, já estava em vigor a atual Lei de Falências (Lei 11.101/05) que passou a não mais exigir fundamentação para o ato que determina a instauração da ação penal (Precedente). Ordem parcialmente conhecida e, nesta parte, denegada.

Saliente-se que, não obstante o caso tratar de delito falimentar regulado no Dec. Lei 7.661/45 (antiga Lei e Falências), o extrato seguinte, retirado do inteiro teor do acórdão, não deixa dúvidas que a orientação firmada se aplica também aos casos de crimes praticados na vigência da Lei11.101/05.

[…] Quanto à aventada nulidade da ação penal em razão da incompetência absoluta do juízo cível, de igual modo, sem razão os impetrantes.

De fato, a ação penal tramitou perante o Juízo Universal da Falência, no caso, a 32ª Vara Cível do Foro Central da Capital Paulista, sendo que, à época de sua instauração, já estava em vigor a Lei 11.101/05, à qual prevê, em seu art. 183, ser da competência do juiz criminal da jurisdição onde tenha sido decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou homologado o plano de recuperação extrajudicial, o processamento de ação penal relativa aos crimes falimentares. Ocorre, contudo, que especificamente no Estado de São de Paulo, a Lei Estadual nº 3.947/83, em seu art. 15, determina que as ações por crime falimentar e as que lhe sejam conexas são da competência do respectivo Juízo Universal da Falência, sendo que, tal diploma legislativo foi declarado constitucional pelo Excelso Supremo Tribunal Federal […]

É bom salientar que não obstante o referido julgado seja anterior à atual Carta Política, bem como à própria Lei 11.101/05 (atual Lei de Falências), suas conclusões permanecem, haja vista tratar-se de decisum atinente à competência legislativa dos Estados para dispor sobre sua organização judiciária, cuja disciplina manteve-se inalterada com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Com efeito, entendeu o c. Pretório Excelso que a competência do Juízo Universal da Falência para o processamento das ações penais é norma típica de organização judiciária, inserindo-se, portanto, na competência legislativa privativa dos Estados […].

Para os casos de conexão ou continência – e principalmente para aqueles em que referidas causas de reunião são desfeitas no curso do processo – o STJ tem firmado posição de que a competência permanece com o juízo a que toca inicialmente o julgamento do crime falimentar, como é possível verificar da decisão seguinte:

HC 83837 / SP

Relator(a) Ministra JANE SILVA

Data do Julgamento 25/10/2007

Ementa

HABEAS CORPUS – CRIMES FALIMENTARES – DECRETO-LEI 7.661/1945 – FORMAÇÃO DE QUADRILHA – CONEXÃO – LEI ESTADUAL PAULISTA QUE ATRIBUIU AO JUÍZO FALIMENTAR COMPETÊNCIA PARA JULGAR O CRIME DESSA NATUREZA – COMPETÊNCIA QUE SE ESTENDE PARA O JULGAMENTO DO CRIME COMUM, EM VIRTUDE DA CONEXÃO – CONSTITUCIONALIDADE DA LEI ESTADUAL AFIRMADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – ORDEM DENEGADA.

I. A Lei de Organização Judiciária do Estado de São Paulo, que atribuiu ao Juízo Universal da Falência a competência para julgar crimes falimentares, sob a égide do Decreto-Lei 7.661/1945, foi considerada constitucional pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal.

II. Portanto, havendo conexão entre o crime comum e o falimentar, ainda que a prescrição venha a ser futuramente declarada em relação a este último, o Juízo Universal da Falência é competente para processá-lo e julgá-lo.

III. Ordem denegada.

Em conclusão

A jurisprudência do STJ, na esteira do que anteriormente julgara o STF, tem prestigiado a legislação local de organização judiciária, ao definir a possibilidade de que esta, validamente, estabeleça a competência do juízo falimentar para o processo e julgamento dos crimes falimentares.

Do mesmo modo, nos casos em que há reunião de crimes comuns e crimes falimentares pela conexão ou continência, o STJ tem determinado a manutenção da competência do juízo ao qual inicialmente toca o processo e julgamento do crime falimentar para prosseguir no julgamento do crime comum, mesmo se extinta a punibilidade do delito falencial.

Caso nosso leitor deseje mais informações para se aprofundar no tema, indicamos a leitura de nossa obra Crimes Falimentares: Teoria, Prática e Questões de concursos comentadas, Ed. Malheiros.


[1] Cumpre salientar aqui uma exceção ao princípio da competência estadual em matéria falimentar, diante de um caso concreto em que um dos sócios da falida ostentava a condição de deputado federal, cujo foro por prerrogativa de função em processos criminais traz caso de competência originária do STF (art. 53, §1º, da CF). Em tal hipótese, a Procuradoria Geral de Justiça de São Paulo entendeu que a convicção caberia unicamente ao Procurador Geral da República, o qual poderia ingressar com ação penal perante o Pretório Excelso, se fosse o caso. A decisão se encontra assim ementada: “Protocolado n.º 101.212/08 – CPP, art. 28. Processo falimentar. Ação Penal n. 583.00.2001.074.201-1/361. Ementa: CPP, art. 28. Ação penal falimentar. Denúncia oferecida em face de sessenta e seis réus. Omissão quanto a um dos sócios, que é parlamentar federal. Prerrogativa de função. Promotor Natural. Remessa à Procuradoria-Geral da República. 1. A omissão quanto a um dos sócios da empresa na denúncia por crime falimentar pode ensejar a aplicação do art. 28 do CPP, muito embora o administrador judicial (requerente) possa, ele próprio, ingressar com ação penal privada subsidiária, nos termos do art. 184, par. ún., da Lei n. 11.101/05. 2. A sócia da empresa, segundo consta das informações trazidas pelo peticionário, seria deputada federal. A opinio delicti, portanto, é de atribuição do Eminente Procurador-Geral da República. Solução: descabimento de designação de outro membro ministerial e remessa de cópia do protocolado à Procuradoria-Geral da República.”

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2 comentários:

  1. Gostaria de parabenizar os idealizadores do blog. Os textos possuem conteúdo muito interessante e de fácil entendimento, exatamente como o acima postado. Continuarei assídua leitora do blog. Denise Bueno

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  2. Obrigado Denise! Ficamos contentes por seu elogio.

    Continue conosco.

    Abraço.

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